29/12/2009

A menina dos olhos vermelhos

E havia nela uma tristeza terna e outonal. Sorria como se lutasse para não chorar, chorava sempre que ninguém a via. Não tinha uma razão. Se pensasse muito nisso, talvez encontrasse uma, mas todo o raciocínio se perdia no primeiro sal de uma lágrima. Quando estava só, quando se deitava, quando acordava e ouvia a chuva a escorrer, quando tinha frio, quando visitava a sua aldeia de infância, quando ouvia um velho falar… sempre os olhos vermelhos, cavados fundo na cara e pesados. Lera nalgum lado que “o problema da felicidade é que toda a gente a merece” e guardava essa frase na sua cabeça como uma máxima que fazia todo o sentido em si. Todos merecemos, mas nem todos a conseguimos, pensava, o sofrimento advém da dúvida de não sabermos se vamos ser uns ou outros. Somos tristes, pobres… falta-nos sempre algo, nem que tenhamos de procurar à força esse algo para nos sentirmos infelizes, pois também não há bem que sempre dure e sorrir sempre deve ser difícil, imaginava ainda no preâmbulo de uma nova lágrima.
E toda ela era olhos vermelhos, olhos vermelhos que se aproximavam das pessoas como se procurassem algo e tivessem em si a tristeza da perda. E procurava: procurava nas outras pessoas a compreensão… enfim, que chorassem como ela. Procurava então os olhos vermelhos, pois para ela só quem chora poderá sentir.

Ornatos Violeta - Chuva



 (João Freire)

24/12/2009

Os Marretas - For what it`s worth (cover)

For what it`s worth... Boas festas.



O original, dos Buffalo Springfield, é este.

21/12/2009

Porque é que alguém escreve?

- Às vezes farto-me das palavras, de tudo isto que é esta escrita inócua... Porque é que alguém escreve?
- Porque gostam.
- Não, não é isso…
- Vem-me à memória aquele adágio que diz que “quem não sabe fazer, ensina”!
- E é isso que eu sinto. Tenho noção que sou melhor no meio das palavras do que no meio das pessoas…
- E talvez sejas fraco por isso. Somos idiotas por não ter coragem de fazer aquilo que queremos e pensamos… todos somos idiotas por causa disso.
- Ninguém faz tudo o que quer, ninguém é assim tão livre. Se fôssemos livres agarrávamos o que queríamos com as duas mãos sem nunca largar independentemente das consequências e eu não vejo muita gente a fazer isso, aliás, acho que haveria muitos crimes se assim fosse.
- Talvez...
- E não me venham dizer que não tenho coragem quando estão sentados numa secretária a receber ordens durante oito horas miseráveis.
- Tu é que disseste que a escrita é inócua.
- Eu ainda tenho noção que sou fraco e aí me redimo. Ficam as palavras, a memória da pessoa que sou no que não fiz.
- Não queria chatear-te.
- Não me chateias. Distrais-me! Mas não me chateias.
- Pareces chateado.
- A verdade é que nada disto vai de encontro àquilo que eu dizia. Isto será a finalidade da escrita.
- Então qual é a confusão?
- Eu gosto de escrever para exteriorizar sentimentos e essa treta psicológica e também gosto de escrever pelo que transmito naquilo que escrevo, mas acho que muito do gosto que tenho advém do jogo que é a escrita, pois há muitos jogos naquilo que tentamos transmitir a quem o tentamos transmitir e a forma como o transmitimos...
- Sim, a escrita é uma brincadeira da imaginação em que os blocos de construção são as palavras...
- E os sons!
- Sim.
- Gosto, por exemplo, da palavra cinismo e não sei porque é que gosto dela, nem do que gosto nela ao certo, mas gosto e uso-a muito. E é este aspecto mais mecânico e orgânico da escrita que me interessa!
- Ah.
- Por isso não me venhas dizer que é uma forma elaborada de comunicação e essas tretas, porque não é isso.
- Que estranho!
- Eu sei que a escrita, por si só, é muito importante e entendo-a, entendo até quem lê, porque se aprende muito, mas o processo de escrita, o processo de autor… isso é que eu não entendo. Aliás, estes factos apenas adensam o enigma: O que é a escrita no grande esquema das coisas que é o universo? Aquele conjunto de letras, de palavras, espaços e pontuação que criam narradores, personagens e universos imaginários? Que sentido tem tudo isto?
- Já estás a chegar ao ponto de pensares demasiado...
- E escrevemos para nós ou para os outros?
- Talvez escrevamos para nós e para os outros.
- A ideia imbecil de que podemos estar a ajudar alguém, nem que seja pela parte do simples e efémero prazer da leitura, e o gosto de sermos lidos e apreciados não podem ser a explicação.
- Procuras explicações, mas recusas as tuas próprias hipóteses...
- E o que os outros pensam terá importância?
- Já nem me ouves...
- Será que gostam, será que não gostam… e que ideia tem de nós aquele que nos lê?
- Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!! Cala-te!
- O que foi?
- E o que é que isso tudo interessa?
- Agora sim, tens razão. Já me calei!

(João Freire)



Nine Inch Nails - The Mark Has Been Made



Para o "tema livre" num desafio da "Fábrica de Letras".

18/12/2009

REI por um dia

porque hoje é um daqueles dias em que sinto mais saudades da família,
porque hoje, parece que está mais frio e cheira a neve.
porque hoje é dia 18 de dezembro e o meu mano mais novo faz anos,
aqui fica, em jeito de primeiro presente para ele, king for a day... fool for a lifetime dos faith no more:



PARABÉNS MANO! :)

"It is not a good day, if you are not looking good
This is the best party that I've ever been to
Today I asked for a god to pour some wine
in my eyes
Today I asked for someone to shake some
salt in my life
Look!
Everything's spinning
(We're on the ground)
Never cheer before you know who's winning
(Don't make a sound)
Sniff the glass and let it roll around on you tongue
Let me introduce you to someone before the party is done
Someone to look to in need or in want or in war
If you give him everything, he may give you even more
This is the best party I've been to
Don't let me die with that silly look in my eyes"

Established since 18/12/1980

No ano passado, em jeito de homenagem fraterna, foi assim. Há dois anos, apesar de também ter sido assim, foi, sobretudo, assim.

Este ano a forma de celebração escolhida é a canção vencedora do Festival RTP da canção e consequente representante de Portugal no Festival da Eurovisão de 1980. Nem é uma coisa boa nem má, é!



Depois, tal como vi aqui, parece-me uma boa ideia encaminhar todos aqueles presentes que pretendem endereçar-me (todos, não, porque estou à espera de alguns... como este) para qualquer obra de solidariedade.

Eu, como gosto desta, sugiro-a e deixo aqui a forma de poderem fazer a vossa contribuição.

Obrigado.

15/12/2009

12/12/2009

Velhos

Parece que alguém decidiu levar um grupo de idosos ao teatro. Parece que a reacção destes foi inesperada. Depois alguém fez um vídeo e, vai daí, o próprio vídeo torna-se numa sensação da internet e até numa forma original de publicitar a peça.
O vídeo é este que se segue.



Não gosto de muita coisa neste vídeo.
Não gosto, nem compreendo que haja alguém responsável pela decisão de levar um grupo de pessoas ao teatro e não tenha a capacidade de perceber ou de se informar com alguém do teatro se esse grupo vai gostar ou não da obra ou sequer se a vai compreender.
Depois, em segundo lugar, não gosto que alguém faça um plano de zoom aos dentes de um senhor como forma de menosprezar os argumentos desse mesmo senhor.
Por fim, não gosto que ainda se fale tanto do Salazar a propósito de tudo e não gosto que alguém justifique os caminhos da droga com uma peça de teatro.

Mas também há muita coisa que gosto.
Em primeiro lugar, gosto do vídeo em si porque me fez rir, mas também gosto do facto dos actores terem continuado a peça pelo meio dos apupos e vaias e – embora não aprecie que eles se riam depois da situação – compreendo que o façam.
Será que eles (os velhos) sabiam que podiam sair a meio da peça?
E, para finalizar, gosto da senhora que aparece no término do vídeo (fora do grupo - o que explica muito das reacções), que diz que gostou da peça, e gosto particularmente do senhor que a acompanha e que apenas diz boa-noite.

Eu quero ser aquele senhor. Eu quero chegar a velho e ter uma senhora que envelheça ao meu lado com uma dentição apresentável e que não me deixe ficar mal visto ao ser entrevistada pelos senhores da televisão.

(João Freire)
O vídeo foi visto aqui

10/12/2009

06/12/2009

Curtas

Uma habilidade


Uma das melhores séries de sempre, aqui.


Uma efeméride


A vida de Fernando Nobre, aqui.


Uma sugestão



Um documentário que serve o propósisto de entreter e fazer pensar, aqui.

02/12/2009

Bife em molho de pimenta num vestido branco

“Como seria se atirasse este bife ao vestido da Rita – pensou –, como reagiria ela e o seu namorado informático ao ver este molho escuro espalhado naquele vestido branco?”

Nada do que se passava àquela mesa se assemelhava ao Natal. O natal não é, ou, como ela conjurava na sua mente, “não pode ser um grupo de recém-amigos, emparelhados em casais à volta de uma mesa, para comemorar uma data que não lhes diz nada!”
Lembrava-se de um outro natal, lembrava-se dos gritos irritantes de crianças andrajosas num jantar em que ninguém está calado, do choro gutural de um bebé privado de um brinquedo, de berros disseminados dos pais a mandar calar os filhos e dos filhos assustados, que num salto apontam culpados que não eles, lembrava-se da comida e bebida, de gargalhadas sonoras, vidro partido de algo caro ou barato entornado de uma mesa, talvez a mesa das crianças ou não, papel de embrulho rasgado pelo chão, quedas e brinquedos partidos.
Esse é que seria o verdadeiro Natal.
Olhava em redor e via caras desconhecidas, pintadas dentro dos contornos perfeitamente delineados a negro, que se contrapunham ao brilho da fileira de dentes branca que usavam como uma figura de estilo no requintado discurso; caras resplandecentes em cima de fatos alinhavados com mestria, pretos e cinzentos, ora camisa branca, ora vestido preto, gola engomada, salto alto, bainha, botões, relógio, decote, cinto, brinco e colar, cabelo, cabelo, gel e cabelo… mais cabelo, equilíbrio e gala. E lembrava-se ao mesmo tempo das suas próprias correrias ruborizadas e ofegantes de menina, do suor na testa que molhava o cabelo, da prima desdentada que se ria em desafio, apresentando ao mundo a ridícula soma de três dentes com a idade de 9 anos, as camisas desfraldadas, mais cabelo suado, uma palma de um adulto na testa com medo da febre e mais correrias, tudo isto enquanto sorria levemente, mexendo com o garfo no seu prato molhado de grãos de pimenta.
“Como seria se atirasse este bife ao vestido da Rita – tornou –, como reagiria ela e o seu namorado informático?”
Sorriu com malícia.
Reminiscência após reminiscência, evocava aqueles dias de Dezembro, podia jurar que sempre iguais, com a mãe a passar ferro, o irmão bebé a brincar com algo novo e insignificante, o outro irmão na rua a desmontar uma bicicleta nova para arranjar uma mais velha que estava pendurada na parede da garagem, o pai sempre a trabalhar, uma panela de pressão no bico maior do fogão, a missa na televisão, o lume na lareira e tudo sempre assim, porque a missa não podia nunca estar na lareira, nem a panela na televisão, da mesma forma que o seu irmão não podia manter algo novo intacto por muito tempo, a natureza das coisas, portanto! E ela a pedir à mãe para ir aos tios, que ainda faltava receber presentes, sem, no entanto dizer que ainda faltava receber presentes, mentindo-lhe que tinha uma coisa para dizer à prima, e depois nem via a prima, entregando um saco com prendas que também não via, aguando os olhos até receber o seu saco (e dos seus irmãos), com as suas prendas, e sempre uma boneca, sempre coisas para pintar e uma agenda, uma agenda que morreria com uma entrada apenas:
“19 de Fevereiro:
Hoje nevou.
Eu e os meus irmãos fomos brincar para a rua.
Foi divertido."
E sempre muitos papéis e o seu barulho.
- Mas só em casa – exclamava a tia de dedo em riste.
E só em casa é que abriam. E brincavam, riscavam, sujavam, esperavam pela neve, brincavam de novo até as rodas do carro se gastarem, o cabelo da boneca se arrancar, as folhas do bloco de desenhar se riscarem, muitas vezes sem a neve aparecer.
- E a neve sem aparecer – dizia alguém.
E continuavam, ao contrário do pai que se sentava ao lume e ria…
- É meu – dizia um.
- É meu – dizia o outro.
…E ralhava.
Eventualmente seria dela – recordava, num assomo de superioridade perante os irmãos –, mas os irmãos nunca se importam com juízos de facto no que diz respeito à posse de brinquedos.
Depois os avós, “mais uma boneca, uma nota, uma pista de carros para os dois idiotas, um par de meias” e sempre as mesmas contas de somar e subtrair, para comparar com o ano anterior.
E tudo igual.
Podia jurar que era sempre igual, que recebia sempre os mesmos presentes embrulhados no mesmo papel e que os dias eram sempre iguais e a mãe a passar a ferro, os miúdos à volta dela já com os brinquedos, o pai a trabalhar e a neve… às vezes neve, outras vezes sem neve, mas sempre igual.
E enquanto se lembrava disto começou a chorar. O seu namorado (também) informático perguntou-lhe, discretamente, o que se passava.
- Opá – disse, emocionada, para que todos a ouvissem – estava aqui a lembrar-me do Natal em minha casa quando era miúda.
E todos, sem excepção se lembraram dos gritos irritantes de crianças andrajosas num jantar em que ninguém está calado, do choro gutural de um bebé privado de um brinquedo, dos berros disseminados de pais a mandar calar os filhos e dos filhos assustados, que num salto apontam culpados que não eles, lembrando-se também da comida e bebida, de gargalhadas sonoras, vidro partido de algo caro ou barato entornado de uma mesa, talvez a mesa das crianças ou não, papel de embrulho rasgado pelo chão, quedas e brinquedos partidos.

- Como seria se atirasse este bife ao vestido branco da Rita?

(João Freire)

Texto subordinado ao tema "Natal" num desafio da "Fábrica de Letras".

24/11/2009

É a história de um homem que por ciúme mata o seu próprio irmão. É a história de um homem que por ter matado o seu próprio irmão é marcado, por deus, com um sinal na testa. É a história de um homem, que por ter matado o seu próprio irmão e ter sido marcado na testa por deus, vagueia pelo mundo à procura de uma explicação. É a história de um homem que, por ter matado o seu próprio irmão e ter sido marcado na testa por deus, vagueando pelo mundo à procura de uma explicação, se encontra envolvido em muitas outras histórias de muitos outros homens em diferentes tempos e lugares. É a história de um outro viajante magnífico. (um viajante no tempo)
É a história de Caim contada por Saramago. Uma história cheia de peripécias, humor e muitos factos bíblicos.




"O caminho subia e subia, e o jumento, que, bem vistas as coisas, de burro não tinha nada, avançava aos ziguezagues, ora para cá, ora para lá, supõe-se que devia ter aprendido o genial truque com as mulas, que nesta matéria de ascensões alpinas a sabem toda. Uns quantos passos mais e a subida acabou. E então, ó surpresa, ó pasmo, ó estupefacção, a paisagem que caim tinha agora diante de si era completamente diferente, verde de todos os verdes alguma vez vistos, com árvores frondosas e cultivos, reflexos de água(...) Era como se existisse uma fronteira, um traço a separar dois países, Ou dois tempos, disse caim sem consciência de havê-lo dito, o mesmo que se alguém o estivesse pensando em seu lugar. Levantou a cabeça para olhar o céu e viu que as nuvens que se moviam na direcção donde viemos se detinham na vertical do chão e logo desapareciam por desconhecidas artes. Há que levar em consideração o facto de caim estar mal informado sobre questões cartográficas, poderia mesmo dizer-se que esta, de certo modo, é a sua primeira viagem ao estrangeiro, portanto é natural surpreender-se, outra terra, outra gente, outros céus e outros costumes.
(...)
Então estamos no futuro, perguntamos nós, é que temos visto por aí uns filmes que tratam do assunto, e uns livros também. Sim, essa é a fórmula comum para explicar algo como o que aqui parece ter sucedido(...)
Já as palpebras tinham começado a pesar-lhe quando uma voz juvenil, de rapaz, o fez sobressaltar, Ó pai, chamou o moço, e logo uma outra voz, de adulto de certa idade, perguntou, Que queres tu, isaac, Levamos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a vítima para o sacrifício, e o pai respondeu, O senhor há-de prover (...) Há uns três dias, não mais tarde, tinha ele dito a abraão, pai do rapazito que carrega às costas o molho de lenha, Leva contigo o teu único filho, isaac, a quem tanto queres, vai à região do monte mória e oferece-o em sacrifício a mim sobre um dos montes que eu te indicar. O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim.
(...)
Depois atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço (...) Sou caim, sou o anjo que salvou a vida a isaac. Não, não era certo, caim não é nenhum anjo, anjo é este que acabou de pousar com um grande ruído de asas e que começou a declamar como um actor que tivesse ouvido finalmente a sua deixa, Não levantes a tua mão contra o menino, não lhe faças nenhum mal, pois já vejo que és obediente ao senhor (...) Chegas tarde, disse caim, se isaac não está morto foi porque eu o impedi. O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado foram contínuas mudanças de rumo que me desorientavam, na verdade vi-me em papos-de-aranha para chegar aqui, ainda por cima não me tinham explicado bem qual destes montes era o lugar do sacrifício, se cá cheguei foi por um milagre do senhor, Tarde, disse caim, Vale mais tarde que nunca, respondeu o anjo com prosápia, como se tivesse acabado de enunciar uma verdade primeira, Enganas-te, nunca não é o contrário de tarde, o contrário de tarde é demasiado tarde, respondeu-lhe caim.
(...)
Outro presente, disse. Pareceu-lhe que este devia ser mais antigo que o anterior, aquele em que havia salvo a vida ao rapazito chamado isaac, e isto poderia mostrar que tanto poderia avançar como voltar atrás no tempo, e não por vontade própria, pois para falar francamente, sentia-se como alguém que mais ou menos, só mais ou menos, sabe onde está, mas não aonde se dirige(...)Lá longe, vinda mesmo a propósito, na beirinha do horizonte, distinguia-se uma torre altíssima (...)
À medida que se aproximava, o rumor das vozes, primeiro ténue, ia crescendo e crescendo até se transformar em perfeita algazarra. Parecem malucos, doidos varridos, pensou caim. Sim, estavam doidos de desesperação porque falavam e não conseguiam entender-se (...) Falavam línguas diferentes (...)A sorte foi ter dado logo com um homem que falava hebraico, língua que lhe tinha calhado em sorte no meio da confusão criada e que caim já ia conhecendo, com gente a expressar-se, sem dicionários nem intérpretes, em inglês, em alemão, em francês, em espanhol, em italiano, quem o imaginaria, em português. Que desacordo foi esse, perguntou caim (...)
Muitos anos depois se dirá que caiu ali um meteorito, um corpo celeste, dos muitos que vagueiam pelo espaço, mas não é verdade, foi a torre de babel, que o orgulho do senhor não consentiu que terminássemos. A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele."


in Caim de José Saramago

20/11/2009

E agora, para algo completamente diferente

Peguem num vídeo algo banal, juntem-lhe câmaras de alta-velocidade, filtros de câmara catitas e profissionais competentes e obtêm uma obra cinematográfica digna de estudo.



Retirado de um dos melhores programas de televisão do mundo

16/11/2009

O dia da libertação

(baseado em factos verídicos)

O dia da libertação começou como tantos outros. Era Março e o calor sacudia as almas até à exaustão. O meu turno começara há duas horas e fazíamos a nossa primeira pausa do dia para uma ligeira refeição. Claro que ninguém ligava ao rádio, era apenas um ruído suportável que acompanhava o dia dos trabalhadores, e somente quando um dos sindicalistas começou a esbracejar é que percebemos que alguma coisa se passava.
- A guerra começou - exclamou, anunciando o pior em três simples palavras.
A confusão instalou-se. Alguns, aqueles que não tinham pertences na cidade nem familiares, conseguiram resistir à tentação da histeria, mas outros, como eu, circundavam a refinaria, procurando os chefes de turno ou alguém que lhes permitisse uma hora ou duas de folga. Consegui, mas depressa me avisaram do erro que cometia e de como era melhor ficar ali à espera não sei bem do quê. Diziam para lhes telefonar, para encaminhar os meus para o aeroporto ou para a refinaria, diziam para não sair, que era perigoso percorrer a estrada de volta à cidade e diziam-me que os pretos estavam a matar todos os brancos.
(“Todos” sempre me pareceu demasiado)
E lá fui, carregado apenas de amor pela minha família e de medo pela forma como me matariam. “Seria com uma catana”, pensava, ”Seria com um pau rombo?”
Não voltaria.
Telefonei antes, dizendo à minha mulher que pegasse nas crianças e fosse com os nossos vizinhos para o aeroporto comprar passagens para Lisboa, mas não sabia ao certo se ela obedeceria, derivado a que também ela sentia o peso de deixar a nossa casa, as nossas coisas e o nosso país.
Já no caminho, uns minutos depois de abandonar a segurança da refinaria, um homem maciço mandou-me parar e lembro-me agora de pensar se o atropelava ou não e se tentaria superar a barreira que atrapalhava a passagem ou não.
- Quem é você e o que faz aqui?
Pensei que estava morto, que não tinha sítio para fugir e que tinha sido fraco na hora da morte porque nem sequer tentava fugir ou reagir.
(Que cobarde és, Jaime. Não vais voltar a ver a tua mulher, Jaime, e os teus filhos, Jaime, não vais voltar a ver Setúbal, Jaime.)
Mas ainda não seria ali.
- Temos ordens do general Manhomanha Santos para deixar passar os senhores da Petrogal, mas há comandos espalhados por aí que não sabem disso. Está avisado. Prossiga.
E eu fiquei mais calmo. Deixaram-me e segui até à cidade.
Na cidade nada, apenas ruído de algo que não identificava ao longe.
(Como quando estava fora do Estádio do Bonfim e se ouvia aquele burburinho no interior após uma jogada mais incendiária)
Passei a avenida principal, a praça e o mesmo silêncio. Já no bairro onde morava, com vista para o porto, os portões abertos, lixo espalhado e o mesmo silêncio. Entrei na casa e nada, apenas gavetas abertas, roupa revoltada pela casa e coisas a bater. "Talvez os vizinhos", pensei. Nada.
Deduzi que já tivessem partido e fiquei mais aliviado.
Eu também iria para o aeroporto.
(A empresa lá ficou. Depois ainda tentei telefonar mas já não consegui)
Antes de chegar ao aeroporto, mesmo por estradas travessas, a imagem de Angola, a imagem da libertação de um povo há 500 anos submetido ao poder dos brancos: A terra vermelha, as caras negras, os dentes brancos, o calor, a humidade estavam lá, mas estava principalmente a imagem de uns quantos a gritar “UPA, UPA, UPA” e “Angola vai agradecer” enquanto perseguiam um senhor (talvez o senhor Roberto da mercearia, que tinha uma fazenda, e a sua família) e agitavam as catanas.
Parei o carro.
Claro que não devia ter parado, devia ter continuado mais um ou dois minutos até ao aeroporto. Se tivesse continuado nunca teria a certeza que era o senhor Roberto, que era a sua família e que eram catanas aqueles objectos que os pretos tinham na mão. Lá estava a terra vermelha, as caras negras, os dentes brancos, o calor, a humidade, mas também a raiva, os olhos amarelos, e um menino caído no chão a chorar.
Não devia ter mais de três anos aquele menino que eu já entretera muitas vezes na mercearia, e era ele
(foi ele)
que no dia 15 de Março de 1961, o dia da “Acção”, como lhe chamaram, estava a ser agarrado pelas duas pernas e sacudido com toda a força de um soldado contra o capot de um carro.
O Corpo vivo da criança bateu no carro e morreu instantaneamente, os seus berros deixaram lugar ao silêncio e já só se ouvia o “UPA! UPA” e o choro descontrolado da mãe.
Depois, com uma catana, separaram a cabeça do senhor Roberto do resto do seu corpo e por fim, perante uma mulher destruída por dentro, e ajoelhada no meio de uma rua de Angola, um dos soldados de libertação apontou uma pistola à parte de trás da sua cabeça e disparou. O seu corpo caiu de imediato, não para a frente, mas para o lado.
Guerra é guerra, não tem a ver com cor, não tem a ver com política, não tem a ver com nada.
Para mim a guerra é a memória que aquela mulher teve no último minuto da sua vida.

(João Freire)

Texto subordinado ao tema "Preto & Branco" num desafio da "Fábrica de Letras" .



Publicado anteriormente aqui

13/11/2009

dEUS - Little Arithmetics

10/11/2009

A teoria dos dois atiradores (parte 2)

Continuação do texto A teoria dos dois atiradores (parte 1)

Não morreu. Diria ela que não teve essa sorte. Salva pelo rapaz que a amava, pagou-lhe com o seu corpo, entregando-se a ele sem esperança nenhuma de felicidade. Culpá-lo-ia por isso mais tarde, ainda que soubesse que só o culpava porque ele a amava incondicionalmente e que nunca a iria deixar só. Na realidade só podia culpar-se a ela própria. Ninguém pode fingir uma sede que não sente, dizem os poetas, ninguém pode fingir o amor.
E quanto mais ela tentava apaixonar-se por ele, afirmando a si mesma que a beleza se esvaía, que ele era bom moço, honesto, trabalhador e inteligente, que até tinha algumas posses e uma família de bem… racionalizando até que ele a amava pelos dois e que mais à frente “quem sabe?”, mais sentia que nunca iria ser feliz, que nunca iria ter a vida que a pequena aldeia imaginava – com muita inveja – para si, a vida que também ela queria e achava que merecia, uma vida feliz (o que quer que isso seja), a vida que não tinha.
Passava então os dias enlameada na culpa, na sua própria e na dos outros, na do seu marido e na da “outra”, a “outra” que passava sempre à sua frente tão bela e, sobretudo, tão jovem, quando ia à mercearia, à missa... por toda a aldeia, a rapariga que regressara à aldeia para tratar do pai moribundo, a rapariga de quem todos falavam bem, principalmente dos seus dotes físicos, que utilizaria sem dúvida – assim diziam as velhas – para retirar benefícios próprios. E depois riam-se.
Foi quando deu por si a rir-se no meio de duas outras senhoras que decidiu.
Não podia ser uma das velhas. Como é que chegou a isto, pensou. Ela tinha de ser a rapariga de quem todos falavam.
- Como é que cheguei a isto?
Foi por isso que num dia de Novembro, quando os primeiros nevões começaram a chegar à aldeia, que ela decidiu visitar a rapariga. No caminho, devido aos efeitos que o gás provocara naquele dia que toda a gente ainda recordava como o dia da sua morte, parou para vomitar junto ao muro que ladeava o caminho desde o centro da aldeia até ao conjunto de casas que se distanciava da aldeia uns quinhentos passos e onde se encontrava a casa do pai da rapariga, depois abriu o pequeno portão da pequena propriedade e bateu à porta. Respondeu-lhe a rapariga com um sorriso encantador e resplandecente que a deixou cheia de raiva, provocando-lhe alguma atrapalhação. Que bonita é, pensou de imediato, estranhando também a sua altura. Parecia-lhe mais alta do que se lembrava.
- Podemos conversar – perguntou – queria pedir-lhe um favor.
- Claro – respondeu simpaticamente a rapariga.
- Mas aqui não.
A rapariga vestiu um xaile que tinha sobre uma cadeira que se encontrava perto da porta, fechou a mesma e encaminhou a senhora – que achava belíssima – para uma pequena casa ao lado do pequeno portão de entrada onde servia o forno e a arrecadação das mais variadas alfaias.
O segredo residiria numa conversa de mulheres sobre homens e suas crónicas insuficiências. Entre sorrisos conspirativos nada mais foi preciso dizer. A rapariga assentiu e lá foram entrando, a rapariga à frente.
- Esteja à vontade – disse a rapariga, ao virar-se, quando viu a faca encaminhar-se na sua direcção.
Uma vez na barriga, outra nas costas quando o seu corpo tombou no chão e vários cortes na cara que deixaram a rapariga desfigurada para além do reconhecimento.
Tudo o resto foi silêncio.
A mulher saiu pelo pequeno portão, voltou-se para o fechar, olhou a casa e partiu, tentando pisar – sem nenhuma razão – os mesmos passos na neve que desenhara ao chegar até ali. Continuou junto ao muro e parou no mesmo sítio onde vomitara antes. Desta vez, para além de um esgar de dor e má disposição, conseguiu evitar o vómito. Continuou para casa.
Já em casa, onde entrara a correr em direcção ao quarto, pegou numa pequena mala de viagem e numa outra de ombro e desceu.
O seu marido esperava-a no fundo das escadas.
Despediu-se dele rapidamente com um beijo, um pedido de desculpas e uma lágrima. Rafael ainda tentou agarrá-la, perguntando-lhe o que se passava, dizendo-lhe que a amava, mas todas aquelas palavras foram proferidas em vão. Tudo já estava decidido há muito tempo na mente daquela mulher. Já na rua, olhando para trás enquanto caminhava pesadamente pela neve, respondeu apenas ao seu marido que ia viajar, que já tinha comprado os bilhetes e que não adiantava segui-la.
- Desculpa Rafael – repetiu ela docemente.
Nessa tarde, perto da paragem dos autocarros, observando-a a entrar com duas malas no autocarro com destino à cidade, várias pessoas juravam que aquela mulher parecia mais nova… e mais bonita.


Para ouvir em Fundo: Beth Orton - I Wish i never saw the sunshine



(João freire)

06/11/2009

Chuva

É favor clicar na imagem... ou aqui.





P.S. - A foto foi tirada enquanto conduzia, algures no caminho entre Braga e Fundão, o vídeo foi visto pela primeira vez aqui. Mas a versão completa pode ser vista aqui. É mais um daqueles vídeos que mostra o potencial da voz humana, como aquele vídeo da publicidade a um carro.

29/10/2009

Compromissos publicitários

Kids on steps


Carousel

Visto aqui

The great pretender

25/10/2009

A teoria dos dois atiradores (parte 1)

Quem olha para ti, Rafael, enquanto olhas para ela?

Diziam sempre, ora para ela, directamente, ora para a família ou quem quer que estivesse por perto: “é mesmo bonita”. Depois, com o tempo, passaram a dizer que era "gira", "linda", "um borracho", mas elogiando-lhe sempre a cara perfeita e redonda, por onde sobressaíam uns grandes e claros olhos azuis, quase cinzentos.

Os pais e o irmão, habituados à convivência com a sua beleza, pouco lhe diziam a esse respeito, tentando ignorar os seus desfiles de cachecóis e sapatos de salto alto dez números acima do seu, enquanto a sua mãe, avisada pelos perigos da beleza, repetia: “Ninguém precisa de ser inteligente quando se é bonita.” Tivesse ela prestado atenção…

Depois foram os rapazes, depois ficou uma mulher, no intermeio pouco se passou que não seja habitual da idade.

Parecendo acessível, era inatingível. Conheciam-se algumas histórias de amor que protagonizara, todas descritas pela própria como “erros crassos”, afinal, apaixonava-se sempre pelos homens errados num lugar-comum de todo o tamanho que fazia sorrir quem a ouvia.
Procurava o interior, fugindo do exterior que a caracterizara toda a sua vida e queria que gostassem dela por essa fuga do acessório, que gostassem DELA e não da sua cara redonda, com os grandes olhos azul-acizentados.

Atravessar uma rua da aldeia, sempre de forma tão discreta quanto o seu ar permitisse era um desafio e ainda que cumprimentasse todas as pessoas que olhavam para ela com caras sérias e feias ou que aconchegasse a aba da camisa desabotoada nos dois botões do topo, tapando pudicamente o supra-plexo bronzeado e a curvatura dos seus generosos seios, perdia rapidamente a vontade de sorrir, a vontade de sorrir com que saía de casa ansiando que o dia lhe corresse bem. Nem tentando conseguia passar desapercebida às velhas que a olhavam com desdém das portadas das casas. Tudo é exagerado nas pequenas aldeias, principalmente o ódio. Aquela rapariga bonita lembrava-as de uma infância em que se pensavam bonitas, mas na qual nunca nenhum homem olhara para elas como olhavam para aquela, acompanhando as suas pernas nuas num silêncio ofegante, transbordando de desejo.
E ela, ao mesmo tempo envergonhada, enojada e triste, vivia em eterno sobressalto, angustiada entre a esperança de uma nova possibilidade que a contentava de felicidade com o confronto do seu insucesso. Um homem, um futuro cheio de alegria com todos os ingredientes possíveis… filhos, casa… Cada passo que dava terminava numa queda estrondosa. Um mundo cheio de ciclos viciosos que se repetiam para a esmagar.

Um dia, o dia que viria a escolher como o dia da sua morte, depois de sair da mercearia aonde tinha ido comprar uns collants negros para um encontro com um bancário, com quem iria terminar mais uma relação infrutífera, ao conversar com uma senhora que lhe falava do tempo, viu uma rapariga nova, a filha de alguém que tinha estado num sítio durante alguns meses e que agora regressava à aldeia para fazer algo na cidade ali perto, porque o pai sofria de alguma coisa grave e deu por si a lembrar-se de quando tinha a idade da rapariga, de como os homens olhavam para ela, ainda que talvez não daquela forma que olhavam agora a rapariga e nesse instante transformou-se numa velha. Ninguém reparou, aliás, nenhuma transformação visível podia ser observada no seu ainda magnífico corpo de estrela de cinema, mas num instante passou a ser um das velhas que a fulminavam sempre que passava. Começou a chorar descontroladamente. À volta, várias pessoas viram, mas poucas perceberam ou se importaram e apenas um rapaz, um rapaz honrado, honesto e de boas famílias, de quem sempre se dissera que viva apaixonado pela mulher que corria pela calçada, esboçou um gesto de preocupação, levantando-se dos degraus do pelourinho num salto em direcção à mulher, perguntando, sem resposta, se estava tudo bem. Respondeu-lhe um vulto silencioso embrulhado no aroma de um perfume fresco e doce que cheirava a avelãs.

Foi para casa, sem sequer pensar naquele acto de bondade do rapaz, juntou todos os seus pertences e dividiu-os em caixotes que fechou no quarto-de-banho, dentro da banheira. Os discos e os livros para o sobrinho, as roupas para a melhor amiga e o dinheiro numa carta remetida aos pais e irmão. De seguida ligou as bocas do fogão na sua potência máxima, libertando assim o gás venenoso que se ouvia calma mas assustadoramente a espalhar pela casa e esperou deitada. O último pensamento que lhe ocorreu foi o do sorriso daquele rapaz que há pouco lhe perguntara se estava tudo bem, pensando ela que afinal aquele rapaz, Rafael de seu nome, até tinha um sorriso bonito.

Lá fora, sentada num muro, uma rapariga desconhecida olhava com desejo o rapaz que estava nas escadas do pelourinho a olhar a casa da mulher.

Outro rapaz, alguém de quem nunca falam nas histórias de amor, ainda que não estivesse presente naquela altura exacta, imaginava com o mesmo desejo aquela rapariga sentada no muro.


Continua, aqui.

(João Freire)

22/10/2009

Alicia Keys - Fallin' e Rock Wit U

Quando ela se preocupava mais com a música e não tanto com a imagem...






- esta última faz lembrar a Soul do Marvin Gaye misturada com o Funk do Barry White e uns pózinhos de R&B da Adina Howard.

(do seu primeiro álbum Songs in A minor de 2001)

20/10/2009



Um grupo de bloggers junta-se e escreve sobre um tema. Parece interessante.

17/10/2009

U2 - Wake up dead man




(Para o senhor Gabriel)

11/10/2009

Encher chouriços com um ensaio sobre a felicidade feito há algum tempo a propósito de algo

Admiro imenso quem procura a felicidade, quem arrisca tudo na incerteza de um futuro melhor. Não sabem o que querem, mas sabem precisamente o que não querem. São os sonhadores, os eternos sonhadores.

«Não sei para onde vou. Sei que não vou por aí!»
José Régio, poeta, em Cântico negro

Curiosamente, são estes sonhadores os que sofrem mais com a utopia da felicidade que procuram. Permanentemente insatisfeitos com a falta de algo que não sabem bem ao certo o que será, vivem na agonia constante da insuficiência. Há sempre algo que falta… e o que falta? Falta a felicidade. E o que será a felicidade?
Falar de felicidade em termos absolutos é algo difícil que deixa muito lugar àquilo que cada um entende como tal. A felicidade de um será necessariamente diferente da felicidade de outro e essa é só aquela que eles percebem como tal e nunca a real, a absoluta, que será obviamente mais difícil de definir.
Podemos concentrar a definição de felicidade em determinadas coisas que queremos obter ao longo da nossa vida, mas nenhuma delas, per si ou em conjunto, conseguirá garantir um sentimento de felicidade se não houver uma conjuntura de estados de espírito, de formas de pensar e agir que vão de encontro àquilo que nos faz felizes. Se conseguirmos hoje tudo aquilo que pensamos que nos fará felizes, arranjaremos logo a seguir algo novo a desejar. Tendemos para o negativismo, porque tudo na vida segue esse postulado negativista, com o epítome da deterioração e da morte e não precisamos de somar a esse negativismo o fracasso na obtenção de algo que não conhecemos muito bem. Procuramos a felicidade lá à frente, sabendo que o tempo, que a beleza e tudo o resto se esvai e, pensando em tudo isto, é fácil deprimirmo-nos.

«This is your life, and it's ending one minute at a time (esta é a tua vida e está a acabar minuto a minuto)»
Chuck palahniuk, escritor, em Fight Club

Mas é por pensarmos e por sabermos que isso adianta pouco, que nos apercebemos – ou deveríamos aperceber – que a visão teleológica da felicidade pouco acrescenta. Ao contrário, prejudica. A felicidade, tal como o bem, a justiça, o amor ou qualquer outro axioma psicológico, social ou filosófico, visto como uma meta, torna-se irrelevante porque o olhar se perde ao longe em vez de reparar no que é imediato, daí que devamos afastar-nos da sua ‘grailização’. A felicidade não se aspira, vive-se e constrói-se. É um lugar-comum dizer isto, mas é verdade.

«Ficar a olhar com uma esperança ociosa equivale a deixar passar a vida em devaneios.»
Yann Martel, escritor, em A vida de PI

A felicidade é apenas um balanço em retrospectiva do que fomos, obtivemos e fizemos e não uma lista de compras à qual vamos juntando vistos.
Seguramente que há requisitos. Penso sinceramente que ninguém conseguirá ser feliz sem um sentido de compreensão, assente especialmente no auto-conhecimento e no entendimento dos outros e do mundo, que permitirá reconhecer os defeitos e as virtudes de tudo o que nos rodeia corrigindo o que se pode mudar, aceitando o que não se pode, valorizando tudo o que de bom existe – especialmente nos outros (que é onde é mais difícil ver), porque esses outros também são indispensáveis à nossa felicidade, e no mundo –, desvalorizando o mau e o negativo, afastando-nos dele, garantindo assim a humildade necessária para navegar pela vida sem ressentimentos, numa aprendizagem constante com a qual crescemos.

«nosce te ipsum (conhece-te a ti mesmo)»
Inscrição mítica no Templo de Apolo, em Delfos

É certo que as dúvidas nos poderão esmagar e, muitas vezes, acabaremos por nos enganar uma e outra vez, mas se não fossem os enganos do passado nunca teríamos as vitórias do presente e nenhuma derrota deve ser suficiente para desarmar a força de uma consciência tranquila. Por isso, não faz sentido, podendo até cair no ridículo quem o faz, afirmar que não existem arrependimentos no passado.

«Um homem que nunca faz erros é um erro da natureza.»
Leonid S. Sukhorukov, autor de aforismos

Sem dúvida que há arrependimentos (tem de haver), porque não haver é presumir uma impossibilidade. Mais do que defender que não nos arrependemos de nada, devemos reconhecer tudo o que de mal vamos fazendo ao longo da vida, admitindo as nossas acções e as suas consequências, assim como o seu impacto nos outros, a fim de tentar emendar esses erros e de evitar que esses erros e outros se reproduzam no futuro, para que possamos sentir que fizemos o que tínhamos a fazer. Tudo o resto está fora do nosso controlo.

«Arrependo-me muitas vezes de ter falado, nunca de me ter calado»
Públio Siro, escritor latino da Roma Antiga

A infelicidade também é a memória do que fizemos mal, batalhas perdidas e quase esquecidas, histórias do passado que não soubemos resolver e que afinal estão bem presentes em nós. Isso evita-se com sinceridade.
«Ama a verdade, mas perdoa o erro»
Voltaire, iluminista

Não devemos pensar que queremos ser felizes, mas sim no que fazer para tornar melhor o momento que estamos a viver. E isto é tão verdade num encontro a dois, como num jantar de amigos ou durante um dia de trabalho no escritório. Fazer alguém rir, aprender algo novo, ver algo que nunca vimos, partilhar, sentir! Tudo isto pode ser feito em qualquer altura, mas sem forçar. Só temos de estar atentos e dispostos a fazer de um momento qualquer das nossas vidas um momento de felicidade.

«Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.»
José Saramago, escritor, em Ensaio sobre a cegueira

O somatório desses momentos traduzir-se-á na felicidade que procuramos, a absoluta, uma felicidade verdadeira que permanecerá na nossa consciência e na dos outros, sobre o que somos e sentimos e, claro, no que fazemos. Se vivermos a vida, aproveitando tudo o que de bom existe nela, de acordo com aquilo que acreditamos ser o melhor, viveremos de forma mais feliz.

«Só existem dois dias no ano em que nada pode ser feito: um chama-se ontem e o outro amanhã. Portanto, hoje é o dia certo para amar, acreditar, fazer e principalmente viver.»
Tenzyn Giatso, Dalai Lama

Exigirá esforço; não é fácil viver, mas o que mais custa é começar.


(João Freire)

06/10/2009

Amália - Mariquinhas (vou dar de beber à dor)

"Quem conseguir esquecer
que veio cá para morrer
É mais feliz do que eu"



Vista e ouvida também neste blogue por aqui e aqui


P.S. - A hiperligação remete para a página da Wikipédia da Amália em 日本語. Toda a gente sabia da capacidade que a Senhora Dona Amália tinha para pôr asiáticos a cantar em português!

01/10/2009

Cada vez mais novo

Cada vez parece mais novo – dizia, quando o descobria na rua, entre conversas e sorrisos que se ouviam ao longe.
Nunca parecendo mais novo, devido à impossibilidade de tal facto ao nível celular, com as suas complicações mitocondriais e citoplásmicas, a verdade é que, apesar do inclemente correr do tempo, aquele velho costumava assemelhar-se àquele mesmo velho dias, meses e anos antes dos seus encontros habituais. E o velhote gostava de ouvir aquilo, ainda que mantivesse, por humildade, alguma reserva sobre a sinceridade do miúdo.
Mas o rapaz não disse nada naquele dia - talvez por isso tudo e todos estivessem algo estranhos.
E tudo se resumia a um simples facto: aquele homem estava velhíssimo e se antes parecia fácil dizer algo inócuo, que parecia mais novo, que estava impecável, coiso e tal, parecer-lhe-ia agora um atentado à honestidade e à inteligência do homem que pretendia elogiar com tais comentários.
Numa luta titânica pela conservação, mantivera-se longe de rugas e pés de galinha para além do que seria de esperar, mas pelo que agora se via, aos 90 anos, a velhice tinha acabado por alcançá-lo, atingindo-o bem e com força.
A cara de choque do rapaz denunciava-o e o velho, como se de uma tartaruga se tratasse, de boca aberta e gestos lentos, pouco podia fazer senão resignar-se à imagem mefítica de si mesmo que via nos olhos do rapaz.
O jovem, por seu lado, indagando-se sobre "aquele homem com um punho de ferro, que nem dois homens conseguiam abrir na sua juventude, aquele homem alto e elegante… sempre de fato de três peças", procurava nele, ao menos, a sabedoria, a experiência e a perseverança.
Nada. Entretanto, o homem confuso, perdido... velho!
E tudo nele era silêncio, quase que um vazio, como se ninguém estivesse atrás daqueles olhos baços de uma cor verde de garrafa.
Que rugas tão profundas são essas que me impedem de ver-te, ó velho?
Tinha seguramente menos vinte centímetros, estava curvado (ou torto), amarelo, com pele de papel e andava como se fosse um pinguim, com passos muito rápidos, mas curtos de tão ineficazes e custosos. Morreu no dia seguinte sem ninguém saber que um jovem, como ele era, que há-de ficar velho, como ele ficou, e morrer, como ele morreu, o havia comparado a dois animais: uma tartaruga e um pinguim.

(João Freire)

Participação no tema "Velhice" num desafio da "Fábrica de Letras".

28/09/2009

prologue
Confesso que pelo nome, pensei tratar-se de mais um filme de terror sobre o Apocalipse e é claro que só depois de saber quem o tinha realizado, pude ficar na dúvida.
Mesmo assim, tive que ver o trailer, antes de ver o filme.

chapter one: grief
O Anticristo de Lars Von Trier ("Ondas de Paixão"; "Dancer in the Dark"; "Dogville"...) é mais um filme de autor, e não digo isto com desprezo!

chapter two: pain (chaos reigns)
Quem conhece este realizador dinamarquês, sabe que ele é capaz de provocar em nós um mal-estar profundo, (que pode levar muita gente ao desligar do "play" ou à saída permanente, da sala de cinema) e que começa pela tremenda tristeza/dor que tão bem consegue mostrar na tela e transportar para fora da mesma, ao mesmo tempo que nos brinda e alicia com fantásticos planos de câmara e música a condizer, conseguindo fazer com tudo isto, arte. (aqui permiti-me este laivo de excessividade porque por vezes ao gostar de uma coisa, consigo ser demasiado parcial :)

chapter three: despair (gynocide)
O filme relata a história de um casal. Ela uma historiadora obcecada pelo seu ensaio e ele um psiquiatra que toma a sua mulher como objecto de estudo. Ambos sofrem pela perda do único filho, e tentam de tudo para exteriorizar e expurgar a dor com sessões de "terapia caseira".

chapter four: the three beggars
Com uma fotografia estrondosa, um desempenho fantástico de Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe e uma teia metafórica que nos vai puxando mais a cada piscar de olhos, o Anticristo é talvez, como muitos dizem, um filme-consequência da depressão por que passou o realizador, que pensava já não conseguir fazer filmes. Uma, quiçá, expurgação do demónio...

epilogue
"A grieving couple retreat to ’Eden’, their isolated cabin in the woods, where they hope to repair their broken hearts and troubled marriage. But nature takes its course and things go from bad to worse…"






Ps: O filme tem cenas tremendamente chocantes e pormenores de sexo explícito. Beware! :|


entrevista polémica a Lars von Trier em Cannes

26/09/2009

Truísmos de um dia de reflexão

Não gosto de políticos.
Não será só culpa dos ditos. Não gosto de muita gente e por isso os políticos não são excepção.
Sei que é feio generalizar, pelo que assumo a minha fatia de culpa. Mas o desdém com que eu encaro o ofício e as pessoas que o materializam é, se não o maior, um dos maiores ódios que posso nutrir por algo ou alguém e eles não contribuem muito para inverter esta minha opinião.

Por exemplo...
Não gosto de José Sócrates. Essa é fácil. Como diria a canção: “Não sou o único”.
Tudo em Sócrates parece artificial, desde o ar de galã à forma como fala, ou seja, a forma como trata o eleitorado como uma mulher que pretende conquistar: percebendo que as mulheres na faixa etária dos 18 aos 50 gostam de homens responsáveis (com filhos ou animais de estimação) disponíveis… e que têm muita lábia.

Não gosto de Manuela Ferreira Leite porque para além do ar de professora de colégio interno (com paternalismo incluído e tudo), pertence àquele grande núcleo de políticos que nunca sai completamente do espectro partidário, aliás, permanecem mesmo como espectros, aliás, parece mesmo um espectro (se bem que a aparência não possa servir de justificação para não se votar em alguém).

Não gosto de Paulo Portas porque é populista, demagógico, nacionalista e betinho. Tem tudo pensado para dizer o que as pessoas – algumas pessoas! – querem ouvir. Daí o seu sucesso em feiras.

Não gosto de Francisco Louçã porque é parecido ao Paulo Portas, mas com uma agenda diametralmente oposta. Francisco Louçã tem sempre razão – é daquele tipo de pessoas que nunca perde uma discussão, independentemente de ter ou não ter razão. Só difere do Paulo Portas nas feiras que frequenta.

Finalmente: eu até gosto de Jerónimo Sousa, acho que será até um sentimento comum a muita gente, mas ouvi-lo dizer, naquelas entrevistas à moda de teste americano que foram para o ar na SIC há umas semanas, que chora "com alguma facilidade perante situações de violência com os mais fracos" e que
, quando a jornalista (Raquel Alexandra) lhe pergunta se já chorou a ver algum filme, responde rapidamente "Chove sobre santiago", dá-me arrepios de tanto panfletarismo comunista, impossibilitando-me assim de o levar a sério e de o tomar como hipótese de voto.

Ser político é assumir todas as falhas de carácter como virtudes:
- Só os políticos negam a humildade para se diferenciarem dos outros sem serem acusados de gabarolice;
- Só os políticos fazem do apontar o dedo um acto comum sem serem chamados queixinhas;
- Só os políticos evocam o passado em favor de um argumento sem se sentirem rancorosos;
- Só os políticos troçam dos outros políticos sem que ninguém lhes diga que isso é má-educação;
- Só os políticos generalizam qualquer facto como argumento para explicar uma parte sem ninguém lhes lembrar que isso pode ser discriminação;
Mas esta gente nunca ouviu os conselhos das suas avós?

A política, em Portugal, continua a ser a mesma politiquice do início da Democracia.
Sendo assim, enquanto atravessa a fase parva da puberdade, eu abstenho-me de a tentar compreender, recusando-me a participar nas suas aventuras de juventude.
Por estas e por outras, simplesmente não voto.

(João freire)


P.S. - Se ainda votasse na freguesia de onde sou natural, até seria capaz de votar nas eleições autárquicas que se avizinham, porque uma das listas contém gente que eu conheço e sei que vale mesmo pelo que diz.

23/09/2009

Uma noite no Insólito Bar, em Braga

Braga, mais do que uma cidade onde fui muito feliz ou muito triste… ou muito bêbado, é a cidade que me ensinou mais sobre a vida.
- Ver Braga por um canudo - diziam-me.
Mas mais do que ver Braga por um canudo de licenciado, foi lá que, para o bem e para o mal, me transformei no homem que sou.
Por isso, sempre que lá volto e olho os sítios por onde passei e vejo algumas das pessoas que por lá me acompanharam, mesmo os que não conhecia, não consigo deixar de lembrar o rapazinho que era (ao ponto dos meus colegas de casa não acreditarem que eu iria ficar com eles no dia em que cheguei), assim como não consigo deixar de sentir uma certa nostalgia pelo tempo que vivi lá como estudante. Nunca mais vai ser o mesmo!
Ficam, no entanto, as pessoas, a cidade e tudo o que aprendi… para sempre.



(No fim da parte sobre Braga, que é relativamente curta, há uma surpresa musical)


(João Freire)

20/09/2009

18/09/2009

Simpson Sky

Às vezes (por muito abichanado que isso possa parecer) olho para o céu e penso que as nuvens se assemelham àquelas que aparecem no genérico dos Simpsons. Nessas alturas fico contente e assumo que as minhas ideias são o máximo da originalidade, enquanto pronuncio as palavras Simpson Sky, porque acho que soa bem. Não é o céu dos Simpson, mas o céu Simpson, como se também ele fosse uma personagem indissociável da família na série animada. Claro que as minhas ideias não são originais! E basta procurar no google para ver que não são. Ainda assim.


nota: Já vi melhores e mais parecidas, mas na altura em que as vi não tive presença de espírito ou equipamento necessário para segurar a imagem. Fica para a próxima

14/09/2009

04/09/2009

Ninguém responde não quando se pergunta se está tudo bem

Quando alguém nos diz que está triste ou, sem o dizer, nos manifesta isso mesmo de qualquer forma, não cria em nós nenhum sentimento positivo em relação a essa pessoa!
(A pena será o sentimento mais distante do amor e do respeito)
Cria, sim, um sentimento positivo em nós, que estamos melhor, que não estamos tristes, que não estamos dispostos a dizer tanto de nós para nada, que não caímos, enfim, na vergonha de nos despirmos em público.


E depois há pessoas para as quais nenhuma resposta é a correcta, pessoas para quem nada parece certo e quanto mais dizemos, mais fazemos ou escrevemos... pior é.
Quem conseguir dizer o que está certo, à pessoa certa, no momento certo, sem falar de mais ou de menos (o que seria a quantidade certa), atingirá a felicidade, ajudando a espalhá-la.

(João Freire)

01/09/2009

'Funk' you all

Rage against the machine - Renegades of Funk



Para quem não sabe, uma versão disto

Apontamento: Faltaram 7

27/08/2009

A dança da vida



Dançam de forma perfeita. Enleados, quase indistintos, entendem-se, conversam e são cordiais.
É essa a dança!
(Ninguém valoriza um obrigado, um se faz favor ou até um com licença numa relação a dois)
Tenho de ser melhor, deixar de invejá-los naquela dança, não pelas pessoas – eu não invejo pessoas –, mas sim pelo que elas têm: a dança. Eu invejo a dança deles e sinto que tenho de melhorar.
(Talvez um tango ou uma valsa)
Ouço uma música, mas não é convidativa… ainda não.
Tenho de melhorar! Quero aprender...
(a dançar!)
E aqueço-me nesta esperança, o combustível perfeito, na consciência dos meus defeitos, como se de um caminho se tratasse.
Percorro-o e espero chegar.


(João Freire)

21/08/2009

Compromissos comerciais para quem...

Para quem gosta de música


Para quem gosta de dança e cantar à chuva



Para quem gosta de poesia


Para quem gosta de cinema


Para quem gosta de sonhar

17/08/2009

Loucura

E ao fim do dia já não se recordava de quem era.
(E logo ele que sempre se afligira a pensar nessas coisas enfermiças)
Não tinha sido um acontecimento isolado a provocar aquela transformação, nada de um momento para o outro, aliás, pudesse ele recordar-se - no meio de todas as memórias avulsas, imagens e sons que deambulavam erraticamente pela sua mente - e identificaria perfeitamente vários momentos decisivos na evolução da doença. Um dia em que se esqueceu das chaves de casa, outro dia em que reparou, já no elevador do seu prédio, que se esquecera de vestir uma camisa, até àquele dia em que deu por si num escuro beco da cidade com o lábio a sangrar. Pudesse ele lembrar-se de todos esses dias estranhos, nos quais havia uma réstia de coerência temporal e não sobreviria o medo e a confusão. Pior, só quando a sua imaginação gozava com ele, quando lhe assomavam imagens à cabeça de acontecimentos que lhe pareciam tão reais, mas que nunca lhe permitiam saber se o seriam de facto, se tais imagens se referiam a alguma experiência vivida ou, por outro lado, imaginada ou vista, ouvida ou lida, o que fosse, como quando afirmou que queria voltar para a sua mulher, apesar de nunca ter sido casado, ou quando jurou que tinha estado em Woodstock, apesar de ter apenas 39 anos. Nada era mais triste do que a cara dele ao dizer essas coisas, sabendo quem o ouvia que tudo era imaginado e sabendo ele que todos o olhavam como se ele fosse louco.
Tudo perdera o sentido e a ausência desse sentido era a única coisa que o seu cérebro, limitado pela doença, conseguia sentir de forma inteligente.

(João Freire)


Para o tema de Fevereiro de 2011, Loucura, num desafio da "Fábrica de Letras".

Crazy - Cat Power (Cover)

13/08/2009

Festivais de Verão e El Mago

Nine Inch Nails em Paredes de Coura

Visitados neste blogue aqui, aqui, aqui e aqui.


Faith No More no Sudoeste


Visitados neste blogue aqui, aqui, aqui e aqui.
(Para além destas pérolas musicais isoladas que se podem encontrar pelo Youtube, também existe um concerto parecido àquele que deram no Sudoeste, que pode ser encontrado na íntegra aqui.)

...Ainda há bandas de jeito a fazer música de jeito. O Rock está salvo... por enquanto.


*fotografias retiradas do blitz

P.S. - Enquanto estava a ver os Faith No More, acho que o Benfica também deu um festival.

05/08/2009

Braga


Sou um homem de rotinas, poder-se-ia dizer que sofro de uma desordem obsessiva-compulsiva, mas dizê-lo pode parecer pretensioso e por isso não o digo. Digo apenas que tenho formas diferentes de fazer as coisas, algumas que me irritam, outras que me acalmam.
Acordo todos os dias Às 6:38. Se mudo o horário do despertador, faço-o sempre para uma hora que acabe em 8 ou 4, de resto, nunca termino as coisas sem chegar ao ponto que previamente estabeleci, seja a página de um livro ou o número de flexões que faço antes de tomar banho. Faço isto, ainda que demore mais um quarto de hora no trabalho para terminar algo ou meia hora na casa-de-banho para acabar um capítulo do António Lobo Antunes. Depois, sempre que viajo, tenho de comprar coisas específicas para os meus irmãos (um instrumento musical para ele e pins para ela - penso que ela já nem os suportará) e tenho de tirar sempre duas fotografias (estas não vou explicar, mas são sempre duas fotografias em situações específicas). Depois, por último, há algo que eu faço sempre e que é a coisa mais saborosa que posso fazer, que é a rotina da francesinha sempre que vou a Braga. Nunca falho e, apesar de me dizerem que "na Regaleira é que é" ou que "as da Foz são as melhores", eu não dispenso as do 053*, ao lado da Gulbenkian, em Braga, claro.

(João Freire)

* 053 deve-se à referência do indicativo do telefone de Braga. Antes era o 053, agora é o 253. As francesinhas continuam a ser no 053

Reaproveitado para o tema de Dezembro de 2010 sobre Objectos, pessoas, sítios e acontecimentos, num desafio da "Fábrica de Letras".

26/07/2009

Ao Deus dará

Porque é que não gostamos?
Há pessoas que, digam o que disserem, nunca dizem o que devem dizer e que, façam o que fizerem, nunca fazem aquilo que deveriam fazer. Isto acontece simplesmente porque há pessoas que não são as pessoas que deviam ser. Não adianta tentar subverter esta inevitabilidade. Hoje somos culpados, amanhã seremos vítimas, na realidade ninguém tem a culpa - as coisas são como são - e ninguém pode fingir uma sede que não sente.

(João Freire)

Balla - Ao Deus dará




Para o desafio de Setembro Fábrica de Letras, subordinado ao tema "Fingimento".

23/07/2009

Badly Drawn Boy - Silent Sigh



(do álbum/soundtrack About a Boy de 2002)

19/07/2009

Não leia livros de auto-ajuda... e outros conselhos avulsos

Concentre-se, choque, dê nas vistas, destaque-se, endireite-se, estabeleça contacto visual, não diga sim muito rápido, não mostre tudo, invista tempo, seja original inteligente e engraçado, vista-se de acordo com a ocasião (bem, mas não demasiado), não faça dramas, lide com a adversidade, pense no que é importante, sorria.

(João Freire)

16/07/2009

Viagens

40 anos passados sobre o início daquela que seria a maior viagem do ser-humano*...

"Não esqueças que a viagem é como a roupa: a mais excitante é a interior."



* A alunagem, aquela viagem famosa do pequeno passo para o homem e do salto gigantesco para a humanidade
** Fotografia tirada na missão Apollo 8, pelo membro da tripulação Bill Anders


Para o tema "Uma longa viagem..." num desafio da "Fábrica de Letras"

Rage against the machine

13/07/2009

Chris Cornell e o concerto de Dave Matthews

O amor e a adoração contagiam facilmente. Alguém que teve sucesso (em qualquer área, desde a pessoal à profissional) dificilmente convive sem ele. Ninguém lida bem com a rejeição depois da aceitação generalizada. Alguns adaptam-se, conformando-se com a nova situação, racionalizando as suas virtudes, outros simplesmente matam-se na ânsia de que apenas fique a memória de um período áureo e outros tentam mudar, adaptar-se ao mundo que os rodeia, mantendo a todo o custo essa adoração, renunciando em última análise ao que são. A necessidade de nos sentirmos amados faz com que tentemos agradar ao maior número de pessoas, muitas vezes sem prestarmos atenção àquilo que nos agrada a nós.


Olhar para Chris Cornell e, sobretudo, ouvir a música que ele tem feito nos últimos tempos, é constatar a decadência de um homem que muitos consideravam um ídolo. Não será pelo aspecto de arrumador de carros que ele demonstra quando chega ao palco, não será certamente pela voz (em melhor estado do que quando veio com os Audioslave ao semi-demolido Alvalade), nem será muito pela banda assexuada de estilo emo que o acompanha, mas será muito pela música, encomendada ao mercenário dos easymade hits Timbaland, e pelas letras que a todo o custo tentam encaixar-se nelas em refrões orelhudos e simplistas que não lembrariam a bandas de garagem portuguesas - em caso de diferença, talvez o inglês destas pudesse ser mais cuidado. O produto talvez seja aliciante para muita gente, ao meu lado muita gente repetia ad nauseum "That bitch ain´t a part of me. I Said no, that bitch ain´t a part of me", mas a que custo? Conheço homens de 30 anos que se tivessem ouvido o que eu ouvi naquele concerto teriam vertido algumas das primeiras lágrimas da sua vida, homens (e mulheres) que aprenderam a conhecer a música, a língua inglesa e a literatura, o cinema, etc., moldando a sua identidade à volta de alguns valores supremos que, por exemplo, a banda de Chris Cornell, Soundgarden, divulgou amplamente.
O concerto não foi tão mau como seria de esperar, muito por culpa de incursões na música de Soundgarden (em vão esperei por Blow up the outside world), dos Temple of the Dog e até de Audioslave (que parece brilhante quando comparado com o último álbum de Chris, Scream), mas ainda assim, foi um sinal óbvio de um homem, que, só espero, esteja em luta com ele próprio, porque enquanto há luta há esperança.

Sobre Dave Matthews Band, com menção especial para Carter Beauford: Faltou Some Devil, Gravedigger, Angel e Save me* para ser genial! Assim, foi só brilhante.

... E a versão de All along the watchtower, com a inclusão da parte final de Stairway to Heaven? Perfeita!

*Gravedigger, Save me e Some devil são canções do álbum a solo de Dave Matthews, intitulado Some Devil, facto que tornava quase impossível a sua reprodução no concerto, mas, ainda assim, a esperança manteve-se.

Fotografias retiradas do Blitz
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(João Freire)