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31/03/2012

Em tempo de guerra, a primeira vítima é a verdade


Foi por volta do meio-dia de 1 de Fevereiro de 1968 que o General Nguyen Ngoc Loan executou sumariamente um prisioneiro Viet Cong nas ruas de Saigão, durante a Ofensiva de Tet. Quase por acaso, Eddie Adams, um fotógrafo da AP, captou a fotografia que viria a ser uma das mais icónicas da guerra e a perfeita analogia para o desconforto que tal guerra causava entre a opinião pública mundial. (Também há o vídeo, captado por Vo Suu para a NBC).
O que a fotografia e o vídeo mostram à primeira vista é o à vontade do General, um esgar de raiva do soldado que observa no canto esquerdo e o medo patente no rosto do jovem indefeso, com as mãos algemadas, perante uma indiferença generalizada dos que os circundam, num acto de total desumanidade e desrespeito pelos mais básicos valores e direitos humanos. Mas a realidade nunca é bem assim. Não se sabe ao certo o nome da vítima (frequentemente apontada como Nguyem Van Lem), mas, independentemente do seu nome, sabe-se que era um 'oficial' norte-vietnamita, que comandaria uma brigada da morte, que tinha sido apanhado a matar não só oficiais sul-vietnamitas, próximos do general Loan, como as respectivas famílias.
"O general matou o Viet Cong; eu matei o general com a minha câmara. As fotografias são a arma mais poderosa no mundo, as pessoas acreditam nelas, mas as fotografias mentem, mesmo sem manipulação. Elas são apenas meias-verdades... o que a fotografia não disse foi: o que é que você faria se fosse o general naquela altura e lugar, naquele dia quente, e apanhasse o dito mauzão depois dele matar um, dois ou três americanos?"
Eddie Adams
Para o desafio de Março da Fábrica de Letras, subordinado ao tema "Fotografia"


*Citação de Boake Carter


Nine Inch Nails - The Great Below

16/12/2011

Eddie Vedder & Ben Harper - Indifference



I will light the match this mornin', so I won't be alone 
Watch as she lies silent, for soon that will be gone 
I will stand arms outstretched, pretend I'm free to roam 
Oh, I will make my way through one more day in Hell... 
I will hold the candle 'till it burns up my arm 
Oh, I'll keep takin' punches until their will grows tired 
I will stare the sun down until my eyes go blind 
But I won't change direction, and I won't change my mind 
How much difference does it make? 
Mmm, how much difference does it make? 
I'll swallow poison, until I grow immune 
I will scream my lungs out 'till it fills this room 
How much difference does it make? 
Oh, How much difference does it make? 
Oh, How much difference does it make? 
How much difference does it make?


Para o desafio de Dezembro da Fábrica de Letras, subordinado ao tema "Indiferença."

30/08/2011

Fujam... cá para dentro.

Toda a gente gosta de ver fotografias das férias das outras pessoas. Toda a gente! Ou não...

Uma cabra.


Um jardim.


Uma tentativa de suicídio com mortal encarpado à retaguarda


A foto da praxe!


Um calhau.


Dois calhaus.


Calhaus organizados de forma a impressionar uma mulher.


... um calhau voador, vá.


Um buraco de onde extraem calhaus.


Uma paragem para descansar e uma vaca.


Sumo de lima... ou algo com lima.


Uma estrada ladeada de flores.


Um cão a guardar uma praça.


Montras em Braga... ou Barga.


Uma nuvem esquisita.


Um pterodáctilo.


Mais calhaus.


Água fria.


Um calhau congelado... e com dor de cabeça.


Uma cadela a sacudir a água.


Casal romântico em plena observação de baleias ao largo dos Açores.


Amigos... mais ou menos.


Um chapéu.



The Naked And Famous - Young Blood 


Para o desafio de Agosto da Fábrica de Letras, subordinado ao tema "Fugir".

P.S. - Convém dizer que o mérito das fotos é repartido por Bruno Carvalho (Deco), Luis Filipe (Hulk), Ricardo Dias (Ricardinho) e Inês Vilela, sem alcunha, porque as gajas nunca têm.

09/06/2011

Explosões e implosões

Há as pessoas que explodem, não uma explosão literal, como a dos radicais suicidas ou a dos soldados portugueses aos pontapés em granadas na Bósnia (lembram-se?), mas uma explosão emotiva e irracional que nos impele a mudar. Essas explosões ocorrem quando se atingem certos limites, sejam eles de paciência, sofrimento… o que seja, que levam as pessoas a dizer um "basta", um rotundo "foda-se" ou, em alternativa, a partir para a chapada e ninguém pode questionar a capacidade libertadora de ambas. Depois mudam. Mudam de país, mudam de namorada, mudam de atitude perante a vida e isso tanto pode ser positivo, como negativo. Nestas coisas das pessoas nunca há duas iguais nem certezas absolutas (por muito que os livros de auto-ajuda queiram dizer o contrário) e se há pessoas muito contentes com as explosões que protagonizaram, também haverá algumas que não conseguiram mais nada do que afundar-se ainda mais na infelicidade do fracasso, como se de uma explosão de pólvora seca se tratasse... fogo de artifício!
E depois (como há sempre dois tipos de pessoas – garanto-vos que os há e que são só dois), depois, dizia, há as pessoas que implodem… ou melhor, que vão implodindo devagarinho graças a pequenos episódios de descalabro interior. Estas pessoas amargas, que se escondem por detrás do cinismo e arrotos de despreocupação e que têm geralmente um tremelique nervoso no olho, tanto podem ter fracassado em grande, como podem acumular pequenos insucessos psicossociais que os vão envenenando devagarinho enquanto esperam por um antídoto, como se os melhores dias, as soluções para os seus problemas se aproximem sem que façam muita coisa por isso. Às vezes acontece. Lá está, nestas coisas nunca se pode fiar, mas geralmente não. Por isso gosto do primeiro tipo de pessoas (e delas, claro, das pessoas), pessoas que arriscam para avançar, mesmo que antes de avançar dois passos tenham de retroceder um (em jeito do que a Finlândia fez e o Bloco de esquerda queria fazer num nível nacional e político que não é o que eu quero discutir). Por gostar dessas pessoas que explodem, não quero dizer que aconselhe esse modo de vida… não quero sequer dizer que esse seja o meu tipo de pessoa… se pensar bem, raramente explodi… tirando alguns episódios em que queria (o álcool queria)  andar à porrada e mais ninguém quis… mas também não quero dizer de todo que o segundo tipo de pessoa seja melhor, porque “Ficar a olhar com uma esperança ociosa equivale a deixar passar a vida em devaneios”, já dizia o Yann Martel n’A Vida de Pi… mas pensando bem, até um relógio avariado está certo duas vezes ao dia! Mas não sei… Sei que há limites! Sei que os há e que talvez todos tenham um limite. E sei que a forma de lidar com esses limites define aquilo que somos e a vida que levaremos daí em diante. Talvez alguns limites exijam explosões, talvez exijam um pouco de paciência… talvez as explosões devam ser controladas, mas isso do controlo até tem mais a ver com implosões, pelo que talvez…
Talvez, talvez… foda-se! Por agora, atingi o meu limite de escrita.

(João Freire)



Para o tema de Junho de 2011, subordinado ao tema "Os problemas resolvem-se à chapada" , num desafio da "Fábrica de Letras".

02/06/2011

HI5




Para o tema de Junho de 2011, subordinado ao tema "Os problemas resolvem-se à chapada" , num desafio da "Fábrica de Letras".

15/02/2011

A loucura dos loucos



A loucura de que os loucos falam não é a mesma de que outros falam habitualmente. A loucura de que eles falam nem se fala, propriamente… sente-se. Nós, os que não somos loucos, falamos de uma loucura saudável, que nos influencia, mas não nos controla, mas a loucura não é nada disso. A loucura é um peso que esmaga e atemoriza através de um ruído, uma imagem ou um toque, é uma confusão constante impregnada de medo, um ímpeto descontrolado que nos leva ao nosso pior, é o não saber, não querer e não se importar... é o não sentir, sentindo tudo. É a dor. Só anseia pela loucura quem nunca a experimentou e essa é a nossa loucura.


Right Where It Belongs - Nine Inch Nails


Para o tema de Fevereiro de 2011, Loucura, num desafio da "Fábrica de Letras".

07/02/2011

Ranulph Fiennes - O aventureiro que cortou a ponta dos dedos com uma Black & Decker porque não conseguiu fazê-lo com uma pequena machada

Não, não é uma gralha. Não quero falar de Ralph Fiennes, nem tão pouco do "Paciente Inglês". Quero mesmo falar deste homem: Ranulph Fiennes. Pouca gente o conhecerá, eu também não o conheceria se não fosse o Top Gear, mas Ranulph Fiennes é, sem dúvida, um dos mais extraordinários aventureiros que já viveram neste mundo.
Já tinha visto esta entrevista e este episódio há algum tempo, mas cada vez que revejo admiro mais o homem, a sua história de vida e, sobretudo, as aventuras que viveu. As histórias que conta e a forma como as conta nesta pequena entrevista - que vale mesmo a pena ver - impressionam qualquer um. Sim, a parte de cortar os dedos é verdade, tudo porque tinha os dedos queimados pelo gelo.
Não sei se é boa pessoa, não sei se cede passagem aos peões nas passadeiras ou se diz boa tarde quando entra nalgum lado, mas desconfio que seja boa pessoa, muito pela parte final da entrevista em que fala, num ambiente de silêncio que contrasta com o resto da entrevista, da sua primeira mulher que morreu há pouco tempo e que ele conheceu desde os seus 12 anos.

"- Terribly sad… last year… your wife died. You’ve been together since you were…
- She was nine, i was twelve, so we knew each other for fourty-eight years.
- Do you think your drive to keep going, even now, with the marathons and so on… and future expeditions... as anything to do with the fact that you just want to keep yourself busy?
- I don’t want to think anymore, don’t have time to think, so the more i can do… It’s good, yes… keep busy!"






Para o tema de Fevereiro de 2011, Loucura, num desafio da "Fábrica de Letras".

06/01/2011

Da Estupidez

"Todos nós somos, por vezes, estúpidos; por vezes também, somos constrangidos a agir cegamente ou semi-cegamente, de outra forma o mundo pararia; e se alguém retirasse dos perigos da estupidez esta regra: "Abstém-te de julgar e de decidir cada vez que te faltam informações", ficaríamos imobilizados! Mas essa situação hoje muito generalizada, recorda outra que conhecemos há muito, no domínio intelectual. Com efeito, como o nosso saber e o nosso poder são limitados, estamos reduzidos, em todas as ciências, a enunciar juízos prematuros; mas desde que estejamos atentos, como nos ensinaram, para manter este defeito em certos limites e corrigindo-o logo que possível, isso restitui ao nosso trabalho uma certa exactidão."
Robert Musil

Nine Inch Nails - Right Where It Belongs

 Para o tema de Janeiro de 2011, Preconceito, num desafio da "Fábrica de Letras".


24/11/2010

A ninguém lhes parecem os seus defeitos demasiado graves, especialmente o defeito de não considerarem os seus defeitos demasiado graves.

Sou uma pessoa detestável.
Não sei se quero ter filhos. Tenho a certeza de que não quero animais de estimação. Chegam, conquistam o nosso carinho, desprezam-nos, morrem… ou morremos nós! Amor desperdiçado.
Tenho alguma inveja de quem tem sorte na vida. Pode ser inveja do carro, do dinheiro… mesmo que seja dos meus amigos… Se calhar, principalmente quando são os meus amigos - é fácil deixar-mo-nos levar pela inveja.
Gosto que o meu trabalho seja reconhecido. Da mesma forma, também o meu altruísmo e carácter filantropo devem ser referenciados abundantemente pelos beneficiários e espectadores. Eu sou daqueles que gosta de deixar passar as pessoas nas passadeiras e se sente bem por isso. Convém que agradeçam com um gesto, um acenar, ou um obrigado gesticulado. Não o fazendo, são umas bestas ingratas.
Sou preconceituoso na medida em que acho que alguns preconceitos têm razão de ser, como por exemplo as capacidades automobilísticas das mulheres.
Sou orgulhoso, como aqueles que apontam os seus defeitos em forma de elogio, mas também sou teimoso, arrogante e vingativo. "Não sou vingativo, mas quem mas faz paga-mas".
Gosto de corrigir as pessoas e quando me engano… Nunca me engano!
Gosto de discutir. Alimento-me de discussões e recorro ao passado para as ganhar. Normalmente ganho-as, não sei se por mérito intelectual ou cansaço do adversário, o que faz com que também seja chato.
Sou parvo nas brincadeiras, roçando não poucas vezes o mau gosto.
Cometo erros atrás de erros e quando finalmente os corrijo (ou tento) não tardo nem hesito em voltar a cometê-los.
E sou do Benfica.

(João Freire)

Radiohead - Creep

Stone Temple Pilots - Creep

Beck - Loser


Para o tema "Transparência" num desafio da "Fábrica de Letras".

*O título do post remete para uma citação de Carlos Marzal, um poeta espanhol

03/11/2010

Transparências

Jessica Alba


Alice in Chains - Heaven Beside You


Para o tema "Transparência" num desafio da "Fábrica de Letras".

05/10/2010

Nunca se fala do cheiro da terra depois de uma trovoada

Não havia muita gente que conhecesse o mundo antes de ele ser de plástico. As árvores, o chão, os edifícios, como brinquedos, tudo de plástico. Talvez ainda existissem pessoas do tempo anterior à ‘cobertura’, antes da intoxicação total. Sabia-se agora que a contaminação dos solos e das águas, aliada ao degelo dos pólos conduzira àquela situação. Primeiro as inundações, de seguida o fim das correntes marítimas e finalmente uma nova Era Glaciar. Restara a fuga para o interior da terra e os 12 anos de recuperação, com fábricas termonucleares a bombear ar quente para a atmosfera e ar puro (numa mistura de 20% de oxigénio e 80% de nitrogénio) para dentro dos túneis, dando vida àqueles milhões de pessoas que tiveram a sorte de estar ao pé da rede de túneis de isolamento e climatização termonuclear de uma corporação que testava uma nova forma de armazenar energia. Por sorte, o restabelecimento das condições atmosféricas favoráveis à vida humana fora mais rápido do que o previsto, mas a contaminação dos solos inevitável. Os detritos radioactivos eram tantos que nenhum pedaço de terra na nova superfície terrestre era cultivável, sendo até tóxico ao contacto. Convém dizer que a área total terrestre diminuíra para um décimo dos valores dos finais do século XXI e que apenas mil milhões de pessoas haviam sobrevivido, povoando agora uma área da antiga Europa Central junto aos Alpes, estendendo-se a Oeste até ao território de Espanha e a Leste até ao território da Turquia e que se chamava - imagine-se - Nova Europa. Apenas o plástico subsistira, encontrando-se por todo o lado, boiando na água, em formas antigas de produtos variados e desnecessários, aparelhos de outros tempos que agora não serviam para nada mais do que a construção civil. Reconfiguradas as fábricas, que agora, restabelecidas as correntes, os pólos e o sistema climatérico em geral, não serviam nenhum propósito, procedeu-se nelas à reciclagem do plástico.
– Antes este prédio construía-se com ferro e não plástico – diziam os operários, como se contassem uma história inacreditável.
E tudo era plástico. Derretia-se o plástico, convertia-se o plástico nas formas desejadas pelos construtores, transformando-se sobretudo em blocos de construção por encaixe e colagem por calor e construía-se por cima da terra e do mar. A água, essa, era dessalinizada através da osmose reversa e a alimentação baseava-se no aproveitamento da carne humana morta, ultra-congelada, e na pesca, embora apenas algumas espécies fossem permitidas, devido à sua resistência à contaminação. A esperança média de vida baixara drasticamente, dai também a dificuldade de encontrar alguém que vivera no período anterior à cobertura, mas reza a lenda que numa dessas casas de plástico, uma homem muito velho que vivia com o seu filho, a nora e uma neta, lhes contava uma história do tempo anterior à cobertura, enumerando coisas tão fantásticas que faziam os olhos da criança brilhar de admiração e incredulidade. De repente começou a chover, nunca chovia naquele mundo de plástico, ficando toda a gente assustada com o barulho dos trovões. Restou ao velho, que sorria imenso, acalmar a sua família, recordando outros dias de chuva, antes da ‘cobertura’, enumerando coisas que o enchiam de saudades e às quais nunca dera o devido valor, coisas tão banais como a chuva a cair na face ou o cheiro da terra molhada. Sorriu uma última vez, caindo no chão, deixando um sorriso na face, perante a aflição do filho e da nora.
Um homem velho, que apesar de tudo tinha tido muita sorte, que fora casado anos sem conta, que tinha um filho extraordinário, uma nora que o estimava e uma neta tão bela como as estrelas, morria lembrando-se apenas, no meio de um suspiro final, do cheiro que a terra tinha quando chovia. A neta, que durante toda a sua vida ouvira dizer que o seu avô morrera ao contar uma história de um dia de trovoada e do cheiro da chuva, nunca se esqueceu dos poderes fatais desse cheiro. Desde aí que se ouve dizer que nunca se fala do cheiro da terra depois de uma trovoada.

(João Freire)

Para o tema "O cheiro da chuva" num desafio da "Fábrica de Letras".
Respondendo às dúvidas que surgiram ao ler outro texto sobre o Cheiro da chuva.

Radiohead - Fake Plastic Trees

Dave Matthews & Tim Reynolds - Gravedigger

09/06/2010

A importância de (não) correr atrás de algo até à exaustão

Não gosto de jogos. Não quero dizer que não os faça – às vezes é impossível – mas não gosto da forma como me sinto quando entro neles. Talvez por isso, por efectivar esse meu desdém em relação às matérias de jogo onde ele não deva existir, deixei de correr atrás de algumas coisas. O amor não é um jogo, a amizade não é um jogo, a confiança nunca pode ser um jogo. Numa corrida há sempre alguém que não quer ser alcançado e só aí é legítimo tentarmos contrariar essa vontade de fuga perseguindo esse alguém até à exaustão*. Todas as outras corridas são insensatas, todos os outros jogos são desnecessários. Para quê jogar quando algo vale a pena. Às vezes um não é apenas um não e ninguém deve desprezar a bondade por trás de uma palavra que aparenta tanto negativismo. A sinceridade, por vezes também sobrevalorizada, magoa, mas é bem melhor do que o engano. Não há nada de positivo no engano. O engano retarda o sofrimento, abrindo lugar a expectativas e ilusões que mais tarde ou mais cedo se desvanecem, deixando um vazio denso que nos corrói de dentro para fora. A bola não anda de um lado para o outro quando um lado permanece quieto. E apesar de todo o sofrimento, a verdade é que mesmo quem desdenha o jogo sente falta do arremesso, seja porque o espera ou porque está habituado a ele, mas todos os jogos têm um fim e, apesar das atribulações e peripécias que lhe são características, há sempre um alívio regenerador no fim.

(João Freire)

*The Crawl





Para o tema "Estava vazio.." num desafio da "Fábrica de Letras".

12/04/2010

Sobre abismos

"Wer mit Ungeheuern kämpft, mag zusehn, dass er nicht dabei zum ungeheuer wird. Und wenn du lange in einen abgrund blickst, blickt der Abgrund auch in dich hinein."

"Quem luta com monstros deve velar para que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti."


Friedrich Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal


Faith No More - Edge of the world (ao vivo)


Para o tema "Abismo", num desafio da "Fábrica de Letras", acompanhando esta e esta participação.

07/01/2010

Monica Belluci

"Batem muitos corações no coração de uma mulher."



Para o tema "Beleza" num desafio da "Fábrica de Letras", juntamente com o texto O homem que chorava ao barbear-se e a cena final do filme Beleza Americana.

02/12/2009

Bife em molho de pimenta num vestido branco

“Como seria se atirasse este bife ao vestido da Rita – pensou –, como reagiria ela e o seu namorado informático ao ver este molho escuro espalhado naquele vestido branco?”

Nada do que se passava àquela mesa se assemelhava ao Natal. O natal não é, ou, como ela conjurava na sua mente, “não pode ser um grupo de recém-amigos, emparelhados em casais à volta de uma mesa, para comemorar uma data que não lhes diz nada!”
Lembrava-se de um outro natal, lembrava-se dos gritos irritantes de crianças andrajosas num jantar em que ninguém está calado, do choro gutural de um bebé privado de um brinquedo, de berros disseminados dos pais a mandar calar os filhos e dos filhos assustados, que num salto apontam culpados que não eles, lembrava-se da comida e bebida, de gargalhadas sonoras, vidro partido de algo caro ou barato entornado de uma mesa, talvez a mesa das crianças ou não, papel de embrulho rasgado pelo chão, quedas e brinquedos partidos.
Esse é que seria o verdadeiro Natal.
Olhava em redor e via caras desconhecidas, pintadas dentro dos contornos perfeitamente delineados a negro, que se contrapunham ao brilho da fileira de dentes branca que usavam como uma figura de estilo no requintado discurso; caras resplandecentes em cima de fatos alinhavados com mestria, pretos e cinzentos, ora camisa branca, ora vestido preto, gola engomada, salto alto, bainha, botões, relógio, decote, cinto, brinco e colar, cabelo, cabelo, gel e cabelo… mais cabelo, equilíbrio e gala. E lembrava-se ao mesmo tempo das suas próprias correrias ruborizadas e ofegantes de menina, do suor na testa que molhava o cabelo, da prima desdentada que se ria em desafio, apresentando ao mundo a ridícula soma de três dentes com a idade de 9 anos, as camisas desfraldadas, mais cabelo suado, uma palma de um adulto na testa com medo da febre e mais correrias, tudo isto enquanto sorria levemente, mexendo com o garfo no seu prato molhado de grãos de pimenta.
“Como seria se atirasse este bife ao vestido da Rita – tornou –, como reagiria ela e o seu namorado informático?”
Sorriu com malícia.
Reminiscência após reminiscência, evocava aqueles dias de Dezembro, podia jurar que sempre iguais, com a mãe a passar ferro, o irmão bebé a brincar com algo novo e insignificante, o outro irmão na rua a desmontar uma bicicleta nova para arranjar uma mais velha que estava pendurada na parede da garagem, o pai sempre a trabalhar, uma panela de pressão no bico maior do fogão, a missa na televisão, o lume na lareira e tudo sempre assim, porque a missa não podia nunca estar na lareira, nem a panela na televisão, da mesma forma que o seu irmão não podia manter algo novo intacto por muito tempo, a natureza das coisas, portanto! E ela a pedir à mãe para ir aos tios, que ainda faltava receber presentes, sem, no entanto dizer que ainda faltava receber presentes, mentindo-lhe que tinha uma coisa para dizer à prima, e depois nem via a prima, entregando um saco com prendas que também não via, aguando os olhos até receber o seu saco (e dos seus irmãos), com as suas prendas, e sempre uma boneca, sempre coisas para pintar e uma agenda, uma agenda que morreria com uma entrada apenas:
“19 de Fevereiro:
Hoje nevou.
Eu e os meus irmãos fomos brincar para a rua.
Foi divertido."
E sempre muitos papéis e o seu barulho.
- Mas só em casa – exclamava a tia de dedo em riste.
E só em casa é que abriam. E brincavam, riscavam, sujavam, esperavam pela neve, brincavam de novo até as rodas do carro se gastarem, o cabelo da boneca se arrancar, as folhas do bloco de desenhar se riscarem, muitas vezes sem a neve aparecer.
- E a neve sem aparecer – dizia alguém.
E continuavam, ao contrário do pai que se sentava ao lume e ria…
- É meu – dizia um.
- É meu – dizia o outro.
…E ralhava.
Eventualmente seria dela – recordava, num assomo de superioridade perante os irmãos –, mas os irmãos nunca se importam com juízos de facto no que diz respeito à posse de brinquedos.
Depois os avós, “mais uma boneca, uma nota, uma pista de carros para os dois idiotas, um par de meias” e sempre as mesmas contas de somar e subtrair, para comparar com o ano anterior.
E tudo igual.
Podia jurar que era sempre igual, que recebia sempre os mesmos presentes embrulhados no mesmo papel e que os dias eram sempre iguais e a mãe a passar a ferro, os miúdos à volta dela já com os brinquedos, o pai a trabalhar e a neve… às vezes neve, outras vezes sem neve, mas sempre igual.
E enquanto se lembrava disto começou a chorar. O seu namorado (também) informático perguntou-lhe, discretamente, o que se passava.
- Opá – disse, emocionada, para que todos a ouvissem – estava aqui a lembrar-me do Natal em minha casa quando era miúda.
E todos, sem excepção se lembraram dos gritos irritantes de crianças andrajosas num jantar em que ninguém está calado, do choro gutural de um bebé privado de um brinquedo, dos berros disseminados de pais a mandar calar os filhos e dos filhos assustados, que num salto apontam culpados que não eles, lembrando-se também da comida e bebida, de gargalhadas sonoras, vidro partido de algo caro ou barato entornado de uma mesa, talvez a mesa das crianças ou não, papel de embrulho rasgado pelo chão, quedas e brinquedos partidos.

- Como seria se atirasse este bife ao vestido branco da Rita?

(João Freire)

Texto subordinado ao tema "Natal" num desafio da "Fábrica de Letras".

16/11/2009

O dia da libertação

(baseado em factos verídicos)

O dia da libertação começou como tantos outros. Era Março e o calor sacudia as almas até à exaustão. O meu turno começara há duas horas e fazíamos a nossa primeira pausa do dia para uma ligeira refeição. Claro que ninguém ligava ao rádio, era apenas um ruído suportável que acompanhava o dia dos trabalhadores, e somente quando um dos sindicalistas começou a esbracejar é que percebemos que alguma coisa se passava.
- A guerra começou - exclamou, anunciando o pior em três simples palavras.
A confusão instalou-se. Alguns, aqueles que não tinham pertences na cidade nem familiares, conseguiram resistir à tentação da histeria, mas outros, como eu, circundavam a refinaria, procurando os chefes de turno ou alguém que lhes permitisse uma hora ou duas de folga. Consegui, mas depressa me avisaram do erro que cometia e de como era melhor ficar ali à espera não sei bem do quê. Diziam para lhes telefonar, para encaminhar os meus para o aeroporto ou para a refinaria, diziam para não sair, que era perigoso percorrer a estrada de volta à cidade e diziam-me que os pretos estavam a matar todos os brancos.
(“Todos” sempre me pareceu demasiado)
E lá fui, carregado apenas de amor pela minha família e de medo pela forma como me matariam. “Seria com uma catana”, pensava, ”Seria com um pau rombo?”
Não voltaria.
Telefonei antes, dizendo à minha mulher que pegasse nas crianças e fosse com os nossos vizinhos para o aeroporto comprar passagens para Lisboa, mas não sabia ao certo se ela obedeceria, derivado a que também ela sentia o peso de deixar a nossa casa, as nossas coisas e o nosso país.
Já no caminho, uns minutos depois de abandonar a segurança da refinaria, um homem maciço mandou-me parar e lembro-me agora de pensar se o atropelava ou não e se tentaria superar a barreira que atrapalhava a passagem ou não.
- Quem é você e o que faz aqui?
Pensei que estava morto, que não tinha sítio para fugir e que tinha sido fraco na hora da morte porque nem sequer tentava fugir ou reagir.
(Que cobarde és, Jaime. Não vais voltar a ver a tua mulher, Jaime, e os teus filhos, Jaime, não vais voltar a ver Setúbal, Jaime.)
Mas ainda não seria ali.
- Temos ordens do general Manhomanha Santos para deixar passar os senhores da Petrogal, mas há comandos espalhados por aí que não sabem disso. Está avisado. Prossiga.
E eu fiquei mais calmo. Deixaram-me e segui até à cidade.
Na cidade nada, apenas ruído de algo que não identificava ao longe.
(Como quando estava fora do Estádio do Bonfim e se ouvia aquele burburinho no interior após uma jogada mais incendiária)
Passei a avenida principal, a praça e o mesmo silêncio. Já no bairro onde morava, com vista para o porto, os portões abertos, lixo espalhado e o mesmo silêncio. Entrei na casa e nada, apenas gavetas abertas, roupa revoltada pela casa e coisas a bater. "Talvez os vizinhos", pensei. Nada.
Deduzi que já tivessem partido e fiquei mais aliviado.
Eu também iria para o aeroporto.
(A empresa lá ficou. Depois ainda tentei telefonar mas já não consegui)
Antes de chegar ao aeroporto, mesmo por estradas travessas, a imagem de Angola, a imagem da libertação de um povo há 500 anos submetido ao poder dos brancos: A terra vermelha, as caras negras, os dentes brancos, o calor, a humidade estavam lá, mas estava principalmente a imagem de uns quantos a gritar “UPA, UPA, UPA” e “Angola vai agradecer” enquanto perseguiam um senhor (talvez o senhor Roberto da mercearia, que tinha uma fazenda, e a sua família) e agitavam as catanas.
Parei o carro.
Claro que não devia ter parado, devia ter continuado mais um ou dois minutos até ao aeroporto. Se tivesse continuado nunca teria a certeza que era o senhor Roberto, que era a sua família e que eram catanas aqueles objectos que os pretos tinham na mão. Lá estava a terra vermelha, as caras negras, os dentes brancos, o calor, a humidade, mas também a raiva, os olhos amarelos, e um menino caído no chão a chorar.
Não devia ter mais de três anos aquele menino que eu já entretera muitas vezes na mercearia, e era ele
(foi ele)
que no dia 15 de Março de 1961, o dia da “Acção”, como lhe chamaram, estava a ser agarrado pelas duas pernas e sacudido com toda a força de um soldado contra o capot de um carro.
O Corpo vivo da criança bateu no carro e morreu instantaneamente, os seus berros deixaram lugar ao silêncio e já só se ouvia o “UPA! UPA” e o choro descontrolado da mãe.
Depois, com uma catana, separaram a cabeça do senhor Roberto do resto do seu corpo e por fim, perante uma mulher destruída por dentro, e ajoelhada no meio de uma rua de Angola, um dos soldados de libertação apontou uma pistola à parte de trás da sua cabeça e disparou. O seu corpo caiu de imediato, não para a frente, mas para o lado.
Guerra é guerra, não tem a ver com cor, não tem a ver com política, não tem a ver com nada.
Para mim a guerra é a memória que aquela mulher teve no último minuto da sua vida.

(João Freire)

Texto subordinado ao tema "Preto & Branco" num desafio da "Fábrica de Letras" .



Publicado anteriormente aqui

17/08/2009

Loucura

E ao fim do dia já não se recordava de quem era.
(E logo ele que sempre se afligira a pensar nessas coisas enfermiças)
Não tinha sido um acontecimento isolado a provocar aquela transformação, nada de um momento para o outro, aliás, pudesse ele recordar-se - no meio de todas as memórias avulsas, imagens e sons que deambulavam erraticamente pela sua mente - e identificaria perfeitamente vários momentos decisivos na evolução da doença. Um dia em que se esqueceu das chaves de casa, outro dia em que reparou, já no elevador do seu prédio, que se esquecera de vestir uma camisa, até àquele dia em que deu por si num escuro beco da cidade com o lábio a sangrar. Pudesse ele lembrar-se de todos esses dias estranhos, nos quais havia uma réstia de coerência temporal e não sobreviria o medo e a confusão. Pior, só quando a sua imaginação gozava com ele, quando lhe assomavam imagens à cabeça de acontecimentos que lhe pareciam tão reais, mas que nunca lhe permitiam saber se o seriam de facto, se tais imagens se referiam a alguma experiência vivida ou, por outro lado, imaginada ou vista, ouvida ou lida, o que fosse, como quando afirmou que queria voltar para a sua mulher, apesar de nunca ter sido casado, ou quando jurou que tinha estado em Woodstock, apesar de ter apenas 39 anos. Nada era mais triste do que a cara dele ao dizer essas coisas, sabendo quem o ouvia que tudo era imaginado e sabendo ele que todos o olhavam como se ele fosse louco.
Tudo perdera o sentido e a ausência desse sentido era a única coisa que o seu cérebro, limitado pela doença, conseguia sentir de forma inteligente.

(João Freire)


Para o tema de Fevereiro de 2011, Loucura, num desafio da "Fábrica de Letras".

Crazy - Cat Power (Cover)

26/07/2009

Ao Deus dará

Porque é que não gostamos?
Há pessoas que, digam o que disserem, nunca dizem o que devem dizer e que, façam o que fizerem, nunca fazem aquilo que deveriam fazer. Isto acontece simplesmente porque há pessoas que não são as pessoas que deviam ser. Não adianta tentar subverter esta inevitabilidade. Hoje somos culpados, amanhã seremos vítimas, na realidade ninguém tem a culpa - as coisas são como são - e ninguém pode fingir uma sede que não sente.

(João Freire)

Balla - Ao Deus dará




Para o desafio de Setembro Fábrica de Letras, subordinado ao tema "Fingimento".

15/10/2008

Queria pedir-te para me tirares uma fotografia enquanto olho para ti, pois de certeza que conseguiria retratar o amor

Já não sei o que sinto.
O amor resvala frequentemente na direcção do ódio, aproximando-se perigosamente da indiferença. A compreensão, o compromisso e aceitação e até o afecto entre duas pessoas ficam pelo caminho e nada volta a ser como era. Fica sempre a mágoa e pior do que isso, fica sempre um sentimento latente de reconquista que nenhum quer concretizar mas para o qual ambos contribuem. Há sempre um lado que se sente bem com a imagem de si no outro e que luta por manter essa luz por perto para o animar e aquecer e depois há o outro lado que tem sempre algo a provar, que sente que falhou e que procura manter a face. Ficam as dúvidas que se instalam umas em cima das outras, duvida-se do que se sente e até daquilo que se sentiu quando se falava em amor. Como acontece esta transformação?

O amor é uma inequação, uma desigualdade que só é verdadeira com certos valores das variáveis, mas que ninguém conhece. O amor conterá paixão, amizade, individualidade, compreensão, confiança, luta, vontade, sexualidade e tudo o resto que alguém possa lembrar, mas nunca constituirá uma fórmula fixa com um desenvolvimento objectivo e linear. Eu sempre pensei que nunca me apaixonaria, que sempre iria conhecer primeiro a pessoa e depois enamorar-me por esse conhecimento, mas também já saltei de cabeça para o desconhecido e ninguém poderá dizer-me que uma forma será mais correcta do que a outra. À sua maneira, ambas tiveram sucesso e ambas fracassaram. O amor pode começar de uma forma e acabar logo de seguida ou começar da mesma forma e funcionar pela eternidade. Isto é verdade para o princípio do amor como para o fim. Importa o que fica, o que aprendemos e um recém-descoberto amor por nós próprios, mas perde-se um pouco da magia. De facto, quanto mais falo com pessoas de idade avançada, mais me convenço de que o amor enfabulado, aquele de que são feitas as histórias de princesas e príncipes, se transforma em vários amores pequeninos que se distribuem pelos filhos, pelos netos, pela vida e, claro que também, pelo conjuge, e vai desvanecendo até ficar uma memória daquilo que se fazia quando se amava e não do que se sentia. É um amor, mas um amor diferente. Ninguém duvidará que o amor na velhice não assenta na paixão e na sexualidade como acontece aos 17 anos. Claro que todos queremos a magia e o querer, essa vontade partilhada terá até muito a ver com o sucesso da manutenção de um amor pela vida, mas a desmistificação do amor também fará bem às pessoas, obrigando-as a reflectir nas suas escolhas e a tomar um papel activo na construção do amor. Numa vida de facilidades, alguma luta e trabalho fazem bem. E melhor do que acreditar na magia é tornar todos os momentos mágicos. Acreditar que as coisas podem acontecer sem fazermos por isso é simplista, denegrindo a própria ideia de amor.

O amor é um sentimento superlativo de afecto relacional. Tudo isto e só isto.


(João Freire)

Cat power - Love and communication


Recordado para o tema "Paixão" num desafio da "Fábrica de Letras"

14/08/2008

Sem conseguir respirar

Saltou.
A primeira coisa que sentiu foi uma descarga de adrenalina.
Sempre discutira se seria um acto de fraqueza ou de coragem. Podia finalmente afirmar que era um acto de coragem... pelo menos ali, no abismo que era aquela janela, naquele último impulso.
Não pensou em muita coisa naqueles segundos de viagem. Pensara em tudo o que havia para pensar antes de saltar.
Lembrou-se dos pais ou do pouco que tinha para se lembrar deles após aquela noite em que a avó o levou, a ele e aos quatro irmãos (duas raparigas e dois rapazes), para o quarto, depois de um guarda entrar na casa, já muito tarde, retirar o boné, sentar-se na cozinha e pedir para falar a sós com ela, enquanto ela começava a chorar. Lembrou-se também dos seus irmãos, não aqueles que tinha agora, de quem não sabia nada para além do nome das suas profissões, mas dos outros, com menos 25 anos, a brincar em todo o lado, a invocar o inferno pela casa da avó. Depois, por fim, tentou lembrar-se da namorada, mas não conseguiu ao certo. Pensou numa, noutra... em duas ou três caras de amores esparsos que pouco lhe diziam agora e que o resolviam com mais força. No fundo, todo o presente ou o passado mais próximo era uma mistura indistinta de caras, sítios e coisas. Nada ficava, nada valia a pena.
Antes de viver, é preciso sobreviver, mas quando a nossa vida se resume a isso, a sobreviver, deixa de ter sentido. Tudo naquele homem era uma luta constante... jurava mesmo que lhe custava mais acordar, levantar-se, vestir-se e fazer alguma coisa do que ficar na cama quatro dias seguidos sem comer, mesmo com as dores da imobilização que o atacavam na zona dos rins. Acho que foi por isso que não pensou em mais nada - ou talvez nem tenha tido tempo - do que o sol a bater na cara, das sensações que isso lhe provocava sempre, e do vento, barulhento mas ao mesmo tempo tranquilizador, que lhe empurrava a respiração para cima, atrasando qualquer movimento. Foi já perto do fim que teve algum medo.

(João Freire)


Archive - Again


Para o tema "Abismo" da "Fábrica de Letras"