01/11/2018

A vida é demasiado curta para tanta indignação

 Lembrem-se deste tempo. É este tempo que vivemos que antecede o fascismo, pelo menos um tempo assim. A insatisfação generalizada, a crise, a corrupção, o mau funcionamento dos serviços, as guerras políticas, os insultos, o encaixe à força dos outros nas nossas pequenas caixas e etiquetas e depois as insignificâncias: o verniz da deputada, as touradas, o ambiente, o preço da gasolina e o "até amanhã se Deus quiser". Os portugueses têm uma má opinião dos seus políticos, é um facto, isso deve-se em partes iguais aos próprios políticos, ao sistema que os controla e aos cidadãos que os sustentam. Os políticos, angariados nas juventudes partidárias, na banca e nos gabinetes de advocacia, muitas vezes não têm voz própria; o sistema político, muito 'partidarizado' e isento de regulações, é muito influenciável a pressões de interesses, distanciando-se da sociedade civil e os cidadãos, os cidadãos que culpam, mas não responsabilizam, que falam, mas não comunicam, que criticam mas não apontam caminhos, enfim, que participam pouco e pactuam, sem saber, com o estado das coisas.
(Inserir aqui um enorme mea culpa)
A responsabilização é sempre diferente da humilhação e insulto. Isabel Moreira devia ter mais cuidado porque é uma representante da instituição mais importante do país, mas um verniz nunca se pode sobrepormais à avaliação do trabalho para que foi eleita. Acho sempre que a piada tem de ser o resultado da indignação em relação à medida da sua importância. Indignamo-nos muito e rimos pouco e estas pequenas indignações geram amiúde a intolerância. Os argumentos políticos nunca devem servir para alimentar extremismos. O hábito da direita classificar o Governo e a esquerda como extremista e a esquerda de chamar fascistas a todo o espectro do centro-direita é o exemplo acabado de como esse argumentário pode originar, como o menino que gritava lobo, os pólos que tanto queremos afastar, dissimulados na ideia de que os políticos "são todos iguais". Donald Trump chegou à presidência com o slogan de que não era político, Bolsonaro qualificou a "PTralhada" de corruptos e esse sentimento medrou até à eleição. Chegam entre os pingos da chuva como iguais para depois reinvindicarem que são diferentes. E são! E não são só os "rednecks" e os "sertanejos" a dar voz a estes sentimentos. Em Portugal, hoje, um político com esse mesmo discurso do "são todos iguais", com a imagem da deputada a pôr verniz e o deputado a tirar macacos do nariz como ilustração, prometendo a castração química dos violadores e corruptos, dando os banqueiros como exemplo a punir, defendendo a missão nacionalista de tratar primeiro os problemas dos portugueses, dificultando a imigração e o acolhimento de refugiados, indo contra o casamento gay, a favor das tradições e do desenvolvimento do país em detrimento das preocupações ambientalistas arrisca-se a ganhar eleições, porque essa demagogia e populismo reflectem sempre preocupações verdadeiras às quais o sistema político tradicional não respondeu nem deu a devida atenção. Já há até candidatos a nadar nesse lodo primordial onde faltam apenas alguns igredientes para criar a necessidade e o surgimento de um "messias". Lá por fora já aconteceu, em Portugal convém estarmos atentos, para não entrarmos na campanha quando a maioria já se decidiu.

06/10/2018

Uma reflexão sobre a tolerância, suas bestas.

Há dois tipos de pessoas. Só. Podemos andar aqui a enganar-nos a pensar que somos especiais, restos de alguma centelha divina*, mas não. Todos podemos ser reduzidos à inclusão em duas simples caixas - notei isso já há quase 20 anos quando jogávamos ao "preferias"... e continuo a notar agora... quando... jogo... ao "preferias". Isso acontecerá por vários motivos, desde logo por facilitismo, claro, mas também por motivos histórico-bio-fisico-químico-socio-econo... por motivos humanos, vá, que nos terão permitido não só sobreviver como prosperar. É fácil de imaginar que estar incluído no grupo que acha uma planta venenosa por oposição ao grupo que acha que a planta não é venenosa lhe dê alguma vantagem evolutiva. O mesmo acontecerá com o grupo dos que querem ou não fazer uma festinha ao dente-de-sabre ou cócegas ao mamute. Assim se formaram comunidades, culturas, religiões e civilizações sob o espírito do que o que funciona para nós é o que está correcto. Mas se essa obrigatoriedade evolutiva fazia sentido numa classificação primitiva, seria expectável que ao nos afastarmos de um mundo cheio de plantas venenosas, dentes-de-sabre e mamutes em direcção a um mundo tecnológico e globalizado com acesso imediato a informação total essa obrigatoriedade tendesse a diminuir, pelo menos, no que às nossas reacções perante o 'outro' diz respeito. Mas não é de todo o que acontece, por enquanto. Até viveremos uma altura em que esta auto-segregacão parece mais compulsiva. Democratas e Republicanos, direita/esquerda, adeptos de clubes e os antis, religiosos e ateus, medicina tradicional e alternativa, Trump e Clinton, Bolsonaro e Lula, tremoços e amendoins, mostarda e ketchup, Apple e Samsung, gatos e cães, ciência e religião, toda a gente a barricar-se alimentando a sua convicção com a oposição do outro. "Se não estás comigo, és meu inimigo", é uma citação de Darth Vader que retrata perfeitamente não só a temática de alguns filmes mas também a realidade, daí ser tão fácil encontrar citações quase iguais na política, com o célebre aviso de George W. Bush aos aliados de que "ou estão conosco ou estão com os terroristas", na religião, quando Josué perguntou a um homem à entrada de Jericó "Você é por nós, ou por nossos inimigos?", mas também na literatura, desporto e restantes manifestações do comportamento humano, cristalizadas nesse poço sem fundo da comunicação que são as redes sociais. E é nas redes socias que "deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar (...) enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um laureado do Prémio Nobel", como dizia Umberto Eco, que se nota a maior perversidade e extensão destas novas formas de extremismo, porque se a frase de Eco retrata bem a realidade do que é esta democratização da opinião pública, ela retrata também a desconfiança em relação ao outro, num ciclo vicioso em que partimos do princípio que o outro, como está contra mim ou a minha mensagem, é imbecil; como é imbecil, não o conheço melhor e, como não o conheço melhor, não vou deixar de o ver como imbecil. E será esta inversão social na maneira como nos conhecemos, exacerbada pela distância física e anonimidade na maneira como falamos que impossibilita a criação de empatia e dificulta a comunicação - mesmo entre os outros que não são de facto imbecis -  contaminando depois a 'realidade', desde as relações privadas, ao local de trabalho, à nossa própria cidadania. Foi o que vimos na eleição de Trump (alegadamente com ajuda dos hackers russos), mas também noutros fenómenos mais ou menos públicos como o movimento 'metoo', a mais recente campanha presidencial brasileira, a crise entre a Georgina Rodriguez e a dona Dolores ou a cor daquele vestido há uns anos, fenómenos complexos aos quais aportamos essa dinâmica simplista e emocional da internet. Voltando e concordando com Umberto Eco quando conclui que "o drama da internet é o de promover o idiota da aldeia a portador da verdade”, também é verdade que se esse é o drama, a tragédia da internet será a de promover a verdade a desconfiar dela própria e os humanos a desconfiar da sua própria humanidade. A solução não é o ódio, nem a crítica 'desmissiva' e pretensiosa do outro, porque não são os factos que convencem as pessoas e, tirando um ou outro assunto, há factos para dizer e contradizer tudo, mas começar por reconhecer o outro, criar uma ligação, chegar a compromissos e discutir despreconceituadamente será sempre um bom início. Claro que parece lamechas, moralista e infrutífero e claro que, numa sociedade tão extremada, advogar a importância do meio-termo e da moderação é mal-visto: há décadas que estas opiniões são conotadas com os pãezinhos sem sal, (os 'snowflakes', como se diz agora nos EUA), que não são capazes de se decidir, que são engolidos no cliché do politicamente correcto, mas mesmo esse termo, anteriormente utilizado por comediantes que defendiam o direito a piadas mais subversivas, ganhou ultimamente contornos de defesa de ideais racistas, xenófobos ou misógenos. Mas é aí mesmo, no meio, que a sociedade se deve refundar, não significando que temos aceitar o inaceitável, mas dialogando sem ostracizar, com a contribuição da ciência para nos guiar e empurrar, seja para um lado ou para o outro, na melhor direcção. Serão todos os apoiantes de Trump e Bolsonaro imbecis? Não, de maneira nenhuma. Alguns serão, claro, mas haverá no meio desses apoiantes gente inteligente, com opiniões e preocupações bem formadas e que têm de ser levadas em conta. Considerar o outro não é concordar imediatamente com ele, de facto, geramos tantas opiniões enquanto seres humanos que seria impossível concordarmos totalmente com outra pessoa, mas falar, discutir ideias e pontos de vista ajudados pela perspectiva de histórias passadas, de estudos e experiências (ciência) levar-nos-á sempre numa melhor direcção, ainda que não definitiva, numa resistência contra o extremismo, porque também o homem a quem Josué perguntou "Você é por nós, ou por nossos inimigos?" respondeu "nem uma coisa nem outra" e se Darth Vader, na altura ainda o jovem Anakin Skywalker disse "If you're not with me... then you're my enemy!", também é verdade que Obi-Wan lhe respondeu "Only a Sith deals in absolutes. I will do what I must" e deu-lhe uma coça!

*referência aos Transformers

(João Freire)