Cada vez parece mais novo – dizia, quando o descobria na rua, entre conversas e sorrisos que se ouviam ao longe.
Nunca parecendo mais novo, devido à impossibilidade de tal facto ao nível celular, com as suas complicações mitocondriais e citoplásmicas, a verdade é que, apesar do inclemente correr do tempo, aquele velho costumava assemelhar-se àquele mesmo velho dias, meses e anos antes dos seus encontros habituais. E o velhote gostava de ouvir aquilo, ainda que mantivesse, por humildade, alguma reserva sobre a sinceridade do miúdo.
Mas o rapaz não disse nada naquele dia - talvez por isso tudo e todos estivessem algo estranhos.
E tudo se resumia a um simples facto: aquele homem estava velhíssimo e se antes parecia fácil dizer algo inócuo, que parecia mais novo, que estava impecável, coiso e tal, parecer-lhe-ia agora um atentado à honestidade e à inteligência do homem que pretendia elogiar com tais comentários.
Numa luta titânica pela conservação, mantivera-se longe de rugas e pés de galinha para além do que seria de esperar, mas pelo que agora se via, aos 90 anos, a velhice tinha acabado por alcançá-lo, atingindo-o bem e com força.
A cara de choque do rapaz denunciava-o e o velho, como se de uma tartaruga se tratasse, de boca aberta e gestos lentos, pouco podia fazer senão resignar-se à imagem mefítica de si mesmo que via nos olhos do rapaz.
O jovem, por seu lado, indagando-se sobre "aquele homem com um punho de ferro, que nem dois homens conseguiam abrir na sua juventude, aquele homem alto e elegante… sempre de fato de três peças", procurava nele, ao menos, a sabedoria, a experiência e a perseverança.
Nada. Entretanto, o homem confuso, perdido... velho!
E tudo nele era silêncio, quase que um vazio, como se ninguém estivesse atrás daqueles olhos baços de uma cor verde de garrafa.
Que rugas tão profundas são essas que me impedem de ver-te, ó velho?
Tinha seguramente menos vinte centímetros, estava curvado (ou torto), amarelo, com pele de papel e andava como se fosse um pinguim, com passos muito rápidos, mas curtos de tão ineficazes e custosos. Morreu no dia seguinte sem ninguém saber que um jovem, como ele era, que há-de ficar velho, como ele ficou, e morrer, como ele morreu, o havia comparado a dois animais: uma tartaruga e um pinguim.
(João Freire)
Participação no tema "Velhice" num desafio da "Fábrica de Letras".
01/10/2009
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28 comentários:
ser-se velho é o novo preto :)
E afinal a palavra mais bonita do texto veio a revelar-se a mais pestilenta. :D
Para mim, mefítico é o novo preto.
Se lá chegar a pinguim ou tartaruga.
Ser-se velho é como usar calções de ganga feitos de calças cortadas em pleno Inverno, juntamente com camisas de flanela e botas Doc Martens, ou seja, é nesta sociedade algo bastante demodèe
... a não ser que os calções de ganga, camisas de flanela e botas Doc Martens estejam a regressar em força!
Já mefítico... até poderia ser, mas não sei se, tal como o preto, combinará com tudo.
Quanto ao chegar ou não chegar, caro CCCP, acho que não é uma preocupação de muita gente até chegarem mesmo lá, o que é pena.
Pode dizer-se muito de uma sociedade pela forma como se vêem e tratam os seus membros mais fracos.
Obrigado pelas visitas...
De nada. Aquilo é serviço público.
Parado e atento à raiva do silêncio
De um relógio partido e gasto pelo tempo
Estava um velho sentado no banco de um jardim
A recordar fragmentos do passado
Na telefonia tocava uma velha canção
E um jovem cantor falava da solidão
"Que sabes tu do canto de estar assim
Só e abandonado como o velho do jardim"
O olhar triste e cansado procurando alguém
E a gente passa ao seu lado a olhá-lo com desdém
Sabes eu acho que todos fogem de ti pra não ver
A imagem da solidão que irão viver
Quando forem como tu, um velho sentado no jardim
Passa os dias e sentes que és um perdedor
Já não consegues saber o que tem ou não valor
O teu caminho parece estar mesmo a chegar ao fim
Para dares lugar a outro no teu banco do jardim.
Exactamente só que eu não consigo rimar.
Dá pena, ver pessoas, que deram tudo pelos seus, que os acarinharam, protegeram, educaram,confortaram, mimaram... e hoje são tratados como pinguins e tartarugas...
e ainda dizem que nós, occidentais, somos avançados em muitos aspectos, até neste...
tratar a velhice como se ela fosse a lepra da sociedade. Se chegar a pinguim ou a tartaruga quero ter o meu oceano, a minha ilha de gelo...
isso se lá chegar.
O comentário do cccp é um excelente complemento ao texto...
Pois é.
Por isso é que tenho dúvidas sobre se quero (ou posso) ter filhos!
Já os sobrinhos custam!!!
Viva
infelizmente todos envelhecemos, e é uma pena que o corpo envelheça muito mais rapidamente que a alma.
Cumps.
Pode dizer-se muito de uma sociedade pela forma como se vêem e tratam os seus membros mais fracos.
johnny esta tua frase ilustra bem o que penso da sociedade em que vivemos, que trata os velhos como se fossem lixo. As pessoas esquecem que a velhice chega mais depressa do que pensamos. Demora a chegarem os 18 amos mas daí aos 80 são um passo. Pena que as pessoas não se saibam pôr no lugar dos outros, se soubessem tratariam os velhos como gostariam que eles fossem tratados. Excelente este teu cada vez mais novo, afinal não custa nada animar quem a vida e a realidade traz desanimado. Beijinhos
Lunatik, é uma pena que corpo e mente envelheçam e ponto... independentemente da velocidade relativa.
Mary, só podemos melhorar-nos a nós próprios e àqueles que nos rodeiam one at the time... melhorando assim a sociedade.
Johny
O teu texto, infelizmente, é realista. Hoje, tratam-se os velhos sem dinheiro como trastes inúteis. Porque os que têm dinheiro são novos nichos de mercado.
É tão triste e cruel não é?
E sinceramente acho que acabamos por deliberadamente não querer VER a velhice e os mais idosos pelo receio que isso nos provoca, pela antecipação do que seremos nós num futuro não tão distante assim como quereriamos que fosse.
Se ao invés disso soubessemos apreciar e valorizar as rugas e curvaturas de uma silhueta que já teve o seu auge, seríamos também nós, jovens, muito mais felizes.
Jóni... vou ficando sem palavras.
Pra já pra já, este tema da velhice, é um tema que neste momento vivo, respiro, sinto de uma forma muitp pessoal e doída e duramente real, e tu acabaste de me fazer um retrado fiel do dia a dia de quem convive com o processo de envelhecimento de alguém que nos é próximo, e da forma como nós que tantas vezes nos esquecemos que estamos apenas num estágio desse processo, olhamos esse outros, os nossos velhos.
Muito bom, Jóni.
Beijinho Grande
Teresa, é assim (realistas) que gosto dos meus e dos textos de outros porque a realidade consegue ser mais surpreendente do que a imaginação... para o bem e para o mal.
Para mim, Su, a velhice é mesmo isso: tristeza e crueldade, mas não por saber que me acontecerá em mim, antes pelo que provoca nas pessoas de quem gosto.
Mel, o mal de tudo isto acaba por ser o bem. Não há sofrimento no fim de tudo, há um nada que nem é bom nem é mau e sabemos que apesar de tudo o que possamos pensar e sofrer... nada adianta. Resta viver da melhor forma.
Talvez a vida permita que o rapaz chegue a velho. Talvez o destino permita que alguém o compare a uma tartaruga e a um pinguim. Enquanto houver velhos e novos, há-de haver sempre quem se ache mais, por ter menos.
Helga (caloira por aqui)
Obrigado pela visita, Helga! Espero que chegues a veterana. Não há dúvidas que também o rapaz chegará a velho, talvez tenha sido essa realidade a marcá-lo mais. No fim de contas, ele não o comprava a uma tartaruga e a um pinguim para o gozar, comparava-o porque era o que mais se parecia com o que via, numa realidade que o chocava.
O rapaz também lá chegará um dia... se tiver sorte.
Ri-me na parte das mitocondriais e citoplásmicas. :p Na sei porquê... =\
*
Somos o oitavo país do mundo com mais velhos...
Ginger, tais palavras fazem comichão a qualquer um. Não julguem severamente o rapaz, coitado... foi o que ele pensou!
Juana, sinais do tempo... a verdade é que com a crise está mais difícil ter crianças e a percentagem de velhos (penso que seja em percentagem e não em termos absolutos) tende a subir. Conheço muita gente que por várias razões não pensa ter filhos... e sempre é melhor ter velhos do que uma esperança média de vida baixa.
É engraçado como vivemos o dia-a-dia tranquilamente, sem imaginar que, um dia, vamos ser como o velho do teu texto... se chegarmos lá.
Abraço
Na verdade, Catsone, não é tão engraçado assim... mas percebo o que queres dizer.
Lindo e real...beijos,tudo de bom e ótima participação!chica
Muito obrigado, Chica.
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