Barbeava-se todos os dias. Era um ritual que decidira manter. Sabia que não precisava de o fazer, que nada era mais improvável do que aquilo que esperava, mas fazia-o na esperança de que o seu amor fosse suficiente para os dois e que esse mesmo amor fosse capaz de a trazer de volta. E assim esperava, ansiando pelo dia em que acordaria e ela estaria de novo ao seu lado na cama ou no quarto de banho a preparar-se ou ainda ao abrir a porta de entrada e ela ali, com um sorriso, pronta a beijá-lo… talvez no supermercado, perto dos produtos de mercearia, onde se encontravam sempre. Não era no corredor dos produtos de beleza, não era perto das revistas, nem tão pouco a encontrava junto dos doces, mas sim com as frutas e os vegetais.
- Talvez ali ao pé das mangas.
E nada.
Procurava então o seu pequeno carro sempre que atravessava a estrada, esperando que ela, por trás dos óculos escuros, lhe sorrisse e o convidasse a entrar mais uma vez.
E nada.
Procurava por ela em todo o lado, mas em nenhum lado a via. Seria impossível vê-la, mas não seria uma inevitabilidade como essa a diminuir-lhe o ânimo.
O dia em que tudo acabara, envolto num espesso nevoeiro de mágoa, imprimira-lhe no corpo marcas de uma dureza férrea. "Aquele homem não tem futuro", diziam os vizinhos ao vê-lo agir como se nada fosse (porque não há nada mais estranho do que a normalidade inesperada). Seguramente alguém previra que ele se mataria, afinal, “ele amava-a tanto”.
Dela desconfiavam, isso sempre acontecera, mesmo quando ela estava a falar com eles da forma mais simpática e franca possível. Desconfiavam da sua beleza e não havia ninguém mais belo do que ela.
As mulheres invejavam-na, os homens cobiçavam-na e ele não conseguia abster-se de se chatear com todos, como se quisesse tê-la só para si. Fora assim naquela manhã em que ela saiu. Discutira com ela por dar conversa a um estranho, como se o facto de ela responder a alguém significasse a maior das traições. Voltaram a casa em silêncio e ela, ente lágrimas, apenas conseguiu dizer que precisava de algum espaço.
- Vais ter com ele - gritou ele amargamente antes que ela fechasse a porta.
Nunca mais voltaria.
Disseram-lhe que o carro que a matou ia tão rápido quando lhe bateu que teve morta imediata. Disseram-no como se fosse uma coisa boa.
Agora, passados três anos, admitindo a sua obsessividade, sorrindo e brincando com ela como se de um cubo de Rubic se tratasse, arrependia-se de ter feito e dito algumas daquelas coisas, mas o arrependimento é uma palavra que vale pouco no amor e na morte.
(João Freire)
Texto Reeditado para o tema "Beleza" num desafio da "Fábrica de Letras".
Trilho dos Três Rios - Albergaria-a-Velha
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O Trilho dos Três Rios (PR2 ALB), no concelho de Albergaria-a-Velha, é bem
capaz de ser um dos melhores percursos do país devido ao seu enquadramento
nat...
17 comentários:
=) Um texto um pouco dramático, mas bonito tenho que admitir!
O melhor é seguir em frente e não nos arrependermos do que fazemos mas sim do que não fazemos:)
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Obrigado.
Só não compreendi esta do que será melhor, se arrependermo-nos do que fazemos ou do que não fazemos, mas talvez seja por estar um bocado bêbado, uma vez que os camarões - e depois os caracóis -, estavam muito picantes e tivemos de beber muitas cervejas... Definiitivamente, eu acho que é melhor arrependermo-nos do que fizemos do que aquilo que não fizemos. Foi isto que disseste? Se foi, concordo, se não foi, discordo.
Se estás bêbado também já não vais perceber hoje..lool
Não tomes juizo não=)
Discordas pk?
Eu sei que o arrependimento é algo que não conseguimos controlar, mas depois das coisas feitas o que nos adianta arrepender?
É melhor arrependermo-nos de ter feito, do que pensarmos no que poderia ter acontecido se o tivéssemos feito. Se não fizeres vais ficar sempre a pensar "e se?" Ao fazeres, mesmo que as coisas corram mal, pelo menos tens a certeza que tentaste, que fizeste. O arrependimento não serve para nada, tenhas ou não feito, mas mal por mal, que te arrependas de ter feito... de certeza absoluta.
O que disseste vai bater aquilo que te estava a tentar dizer=) loool...
amanha falamos.. hoje não me parece que estejas bem:) quer dizer tu nunca esta, mas hoje superas..loool
Olha mete outro texto:) pk comentar este perdeu a piada..lol
:)
Mais um texto interessante...gostei mesmo muito.
Obrigado, Eva.
Ter uma morte imediata é sempre melhor que ter uma morte lenta, daí que seja uma coisa boa. Disseram-lhe como se fosse uma coisa boa, porque foi de facto uma coisa boa.
Mas ele jamais poderia ver algo de bom na morte dela, nem que fosse apenas esse simples pormenor.
Bonito texto johnny, faz jus à Monica Bellucci. ;)
:p
=D
*
Era para escrever ainda que ela estava esmagada na cintura e que o carro é que a mantinha viva, mas acho que já vi dois filmes assim.
Relativamente à Mónica... Shiu. Isso é um segredo para a minha inspiração da mulher bonita maltratada e agora revelaste-o.
Obrigado pelo elogio.
Ei Johnny, é triste e belo este teu texto, friend. E um volte-face inesperado (?) no fim.
Abraço
johnny lindo este teu post sobre beleza. Lindo e muito real. Inveja, cobiça e ciumes são mesmo os sentimentos que as mulheres belas acabam por inspirar. Ser bela não traz grande felicidade, normalmente. A morte acabou aqui com o sofrimento porque eles teriam uma vida de sofrimento. Ela se o amasse sofreria porque não podia sequer falar, normalmente, com um homem sem que ele lhe atirasse com cenas de ciúmes, ele não tinha paz, os ciúmes não o deixariam. A morte acabou com este drama.
Pssst adorei, ouviste?
Beijinhos
Muitos obrigados, Catsone e Mary :)
Ai...
Eu pensei que ele chorava porque a lâmina o magoava, mas afinal enganei-me...
estou a brincar Johnny... não ligues!
Agora a sério.
Os ciúmes quase sempre matam as relações.
O arrependimento só prova que se tem consciência dos actos e das palavras.
Espero que a personagem tenha conseguido ultrapassar esta fase e que VIVA a VIDA!
bjinhos
Um texto profundo, forte e lindo!abraços,chica
MZ, claro que não conseguiu. Para castigo, há-de viver para sempre com a culpa... que é bem-feito... e é para aprender.
Obrigado Chica :)
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