14/08/2008

Sem conseguir respirar

Saltou.
A primeira coisa que sentiu foi uma descarga de adrenalina.
Sempre discutira se seria um acto de fraqueza ou de coragem. Podia finalmente afirmar que era um acto de coragem... pelo menos ali, no abismo que era aquela janela, naquele último impulso.
Não pensou em muita coisa naqueles segundos de viagem. Pensara em tudo o que havia para pensar antes de saltar.
Lembrou-se dos pais ou do pouco que tinha para se lembrar deles após aquela noite em que a avó o levou, a ele e aos quatro irmãos (duas raparigas e dois rapazes), para o quarto, depois de um guarda entrar na casa, já muito tarde, retirar o boné, sentar-se na cozinha e pedir para falar a sós com ela, enquanto ela começava a chorar. Lembrou-se também dos seus irmãos, não aqueles que tinha agora, de quem não sabia nada para além do nome das suas profissões, mas dos outros, com menos 25 anos, a brincar em todo o lado, a invocar o inferno pela casa da avó. Depois, por fim, tentou lembrar-se da namorada, mas não conseguiu ao certo. Pensou numa, noutra... em duas ou três caras de amores esparsos que pouco lhe diziam agora e que o resolviam com mais força. No fundo, todo o presente ou o passado mais próximo era uma mistura indistinta de caras, sítios e coisas. Nada ficava, nada valia a pena.
Antes de viver, é preciso sobreviver, mas quando a nossa vida se resume a isso, a sobreviver, deixa de ter sentido. Tudo naquele homem era uma luta constante... jurava mesmo que lhe custava mais acordar, levantar-se, vestir-se e fazer alguma coisa do que ficar na cama quatro dias seguidos sem comer, mesmo com as dores da imobilização que o atacavam na zona dos rins. Acho que foi por isso que não pensou em mais nada - ou talvez nem tenha tido tempo - do que o sol a bater na cara, das sensações que isso lhe provocava sempre, e do vento, barulhento mas ao mesmo tempo tranquilizador, que lhe empurrava a respiração para cima, atrasando qualquer movimento. Foi já perto do fim que teve algum medo.

(João Freire)


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Para o tema "Abismo" da "Fábrica de Letras"

16 comentários:

Por entre o luar disse...

Para começar gostei do texto, não gostei foi da tristeza que transmite...

Achas que acabar com a vida é um acto de coragem? Para mim acto de coragem é conseguir encontrar um sentido para a vida e fazer com que cada dia em que acordamos, seja um dia em que vamos viver e não sobreviver!

..."Tudo naquele homem era uma luta constante... " Será que era mesmo?

***

Johnny disse...

A discussão entre a coragem e a fraqueza de tal acto é antiga. eu lembro-me dela desde há uns anos quando um amigo (o Valter) me falou de um trabalho para uma aulda de português na qual tinham de explorar isso. è claro que não sou eu nem tu que vamos chegar a uma conclusão definitiva. no máximo, temos de concordar que tem um bocado das duas porque se é uma solução "fácil" para sair dos problemas, no último instante é sempre uma decisão corajosa de decidir pôr termo à vida e saltar ou disparar ou qualquer que seja a forma. Quanto à questão da luta, eu acho que, às vezes, viver exige muito esforço e luta. Vou ser paternalista e dizer que tens uma versão cor-de-rosa da vida porque és muito jovem.

Por entre o luar disse...

Pois acho que não iriamos chegar mesmo a uma conclusão... pois depende da maneira de ver de cada um também..

Quanto à maneira de ver a vida porque sou jovem, talvez, mas não é por isso que mesmo sendo jovem não tenha passado já por coisas muito más, ~e acho que a maneira como vemos a vida pode ser influenciado pela idade e pelas vivências, mas também pela maneira de ser da pessoa:) e quanto ao paiternal... lol toma juizo, porque não és assim tão mais velho que eu=)

ipsis verbis disse...

"jusqu'ici tout va bien, jusqu'ici tout va bien..."

muito bom. fez-me lembrar "la haine" do Kassovitz. gostei do final.

"C'est l'histoire d'un mec qui tombe d'un immeuble de cinquante étages; au fur et à mesure de sa chute il se répète sans cesse pour se rassurer: jusqu'ici tout va bien, jusqu'ici tout va bien, jusqu'ici tout va bien... mais l'important, c'est pas la chute c'est l'atterrissage."

e se ainda não viram o filme, vejam.

ipsis verbis disse...

do teu final.

Johnny disse...

Já tinha ouvido uma anedota assim. Agora, terá sido o filme a repescar a anedota ou a anedota a sonegar a trama do filme?

Por entre o luar disse...

Gostei deste texto.. e por incrivel que pareça, hoje sim acho que é um acto de coragem*

Beijoo joão=)

Teresa Diniz disse...

Johnny
Por acaso, até costumo ler os teus textos para a Fábrica de Letras, porque acho que escreves bem. Este texto não é excepção. E também encontro comentários teus noutros blogues que comentamos em comum. Já por algumas vezes, fazes comentários sobre a "tenra idade" das escritoras dos textos. Ora essa! Quem te ler, parece que tens uma provecta idade! Isso tenho eu!

Johnny disse...

Por entre o luar, concordamos que vai oscilando entre a coragem e a cobardia.

Teresa, também só fiz isso uma vez... pelo menos em comentário. Como lhe disse, às vezes é difícil arranjar alguma coisa para dizer num comentário. Mas não sendo muito mais velho, ainda sou mais velho dez anos do que a tal blogger... e da mesma forma que lhe disse a ela, também certamente mo dirão a mim.

mz disse...

Mais do que coragem ou fraqueza, o suicídio será sempre um acto de loucura ou desespero total.

bj

Ana Cristina Quevedo disse...

Não discuto se é ato de fraqueza ou coragem.
Para mim é ato de insanidade.
Só.

Muito bons os teus textos.

Beijo

Johnny disse...

MZ e Ana Cristina Quevedo, será um pouco de todas essas coisas, mas a coragem... pelo menos no último instante, como se se tratasse de um salto de bungee jumping ou pára-quedas, é sempre necessária e lá pelo meio também há-de haver sempre alguma dose de arrependimento tardio... dessas duas tenho quase a certeza, depois é a soma de tudo.
Ainda que a loucura ou insanidade a mim não me pareça que exista muito, mas são temas difíceis de explorar, não é?

Obrigado pelos vossos comentários.

Su m disse...

Eu acredito que pôr termo à vida é, no mínimo, um acto acima de tudo de muito desespero. Não me parece que essa seja uma decisão tomada de ânimo leve.
Por outro lado também nunca me deparei - talvez devido à minha tenra idade (pode dizer-me isso que não me importo nadinha :P) - com situações que me pudessem colocar no desespero.

Mas não deixa de ser um texto repleto de tristeza e muita solidão. E quase - mas só quase - consigo imaginar a tristeza e o abismo de solidão que ele sentiria.

Belo texto como sempre.

Johnny disse...

Su, também já pensei nessa questão da possibilidade de haver algo que me fizesse pensar nisso e cheguei à mesma conclusão que tu, ou seja, que não me parece que exista... mas não gosto de pensar muito nisso não vá o diabo tecê-las e arranjar algo que me leve a pensar nisso... não gosto de desafiar as probabilidades, é como o outro do Titanic que dizia que o navio era infundável...

Obrigado pelo comentário e pelo elogio, claro.

Sofia disse...

Este texto reflecte um dos maiores flagelos da sociedade moderna, cada vez mais frequente nas crianças e jovens.
Os motivos para cometer tal acto são variados mas resultam sempre da chegada a um extremo suportado pelo ser humano.
Algumas pessoas que tentaram e falharam descrevem-se cobardes por não terem conseguido.
Sem dúvida o suicidio resulta de um acto de desespero, na maioria das vezes camuflado para aqueles que os rodeiam, nem sempre o exterior reflecte o que nos vai na alma.
O suicidio nao deixa de ser "um grito desesperado por ajuda" B.B

Johnny disse...

Sofia, descrevem-se cobardes por não terem conseguido suicidar-se ou não terem conseguido lidar de outra forma?

Certezas só se conseguiriam se se entrevistasse alguém que tivesse conseguido... mas isso é muito difícil e assim só podemos supor.