06/01/2009

Cântico Negro

Somos todos iguais, cada vez me convenço mais disso. Nada em nós ou no nosso comportamento conseguirá ser minimamente original. Talvez um pé na areia inexplorada... Todos olhamos para dentro com uma visão optimista que redundará no pouco ou no nada. Também nós vamos fracassar. Como não poderíamos fracassar, ainda que bem sucedidos, quando a míriade de possibilidades que se desenrolam à nossa frente desde o dia do nosso nascimento é irreal? Apenas podemos tentar e, mais que não seja, imaginar que, num belo poema, nós não somos aqueles que chamam os outros para um caminho mais fácil e confortável, mas sim o outro que, apesar das dúvidas relativas ao seu destino, tem a certeza que não vai por lá, pelo caminho mais fácil por onde o chamam.
E é assim que, num dia de estranha e inexplicável melancolia, recordo o MEU poema:





"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!Eu amo o
Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio

8 comentários:

Bad Girl disse...

Pura e simplesmente amo este poema.
Obrigada por mo lembrares.
B3ijos

Johnny disse...

De nada. Obrigado também por passares aqui. Para além de ser um dos meus preferidos, este poema é, de facto e sem exageros, uma obra-prima.
Beijos.

Por entre o luar disse...

Adorei o poema=)

Gostei do post...

beijO*

ipsis verbis disse...

fdx! vi ontem pela primeira vez o vídeo que puseste na barra lateral sobre este texto e pensei em postá-lo... e não digo mais nada :|

Johnny disse...

Agradeço os elogios, Por entre o luar. Agradeço MUITO, em nome do José Régio... e APENAS agradeço, em meu nome.

Acho que este poema passa pela cabeça de muita gente, Ipsis... e ontem não foi excepção. Eu também estava para publicá-lo quando o vi, em forma apenas escrita no Puukinha.blogspot.com, mas eu avancei com a publicação, até porque, precisamente por estar na barra de vídeos especiais desde que essa mesma barra existe, já andava há algum tempo para fazê-lo.

Anónimo disse...

Foi uma telepatia colectiva no inicio do ano.Quererá isto dizer alguma coisa?

Johnny disse...

É reflexo da crise, só pode.

ipsis verbis disse...

(não tens colocado etiquetas. faz lá isso, nestes últimos 2 posts teus :)