Sérgio sempre se sentira fascinado pela electricidade, que havia qualquer coisa de mágico na electricidade, afirmava ele tantas e tantas vezes com um certo e exagerado brilho nos olhos, imaginando o percurso da energia desde o momento em que era recolhida nas barragens até àquele instante em que se incandescia o filamento da pequena lâmpada do seu pequeno candeeiro na mesinha de cabeceira. Por isso dispensava o
abajour, aquele terrível chapéu de abas que tapava a maravilha da ciência que era a luz eléctrica e que ele tanto gostava de observar. Esse fascínio com a electricidade, que tal como disse era congénito e endémico, desenvolveu-se ao ponto de se tornar numa relação de amizade. Ele tratava a electricidade por tu e brincava com ela como se de um colega de escola se tratasse.
(Só assim se explicava a confiança que as pessoas depositavam nele.)
As pessoas da aldeia conheciam-no desde menino, sabiam aliás da sua proximidade com a arte que praticava e por isso mesmo ninguém ficou espantado quando, após a simples associação de uma emergência aparentemente cardíaca à electricidade como solução teórica, os familiares do senhor Martins lhe apareceram a bater à porta.
(É nos casos de emergência, naqueles casos em que o engenho é aguçado, que se descobrem as soluções mais fantásticas.)
Na realidade, não foi bem bater à porta... a Senhora Cândida, que de cândida não tinha nada, habituada a resolver qualquer situação que se pusesse à frente dela com uma prontidão absurda, deslocou-se a casa de Sérgio, batendo à porta como se estivesse a tentar deitá-la ao chão e ordenou a Sérgio que fizesse alguma coisa. Será mais correcto assim.
Diziam que o senhor Martins tinha sentido uma dor no peito, seguida por uma dormência no braço que o fez cair, uma queda não igual a tantos tombos que o mesmo senhor havia dado ao longo dos tempos no café do Ernesto após devorar vinte ovos cozidos seguidos de uma caneca de litro de vinho caseiro - uma actividade habitual, para gáudio de muitos. Sérgio, não tão brusco como a dona Cândida, mas igualmente despachado, aproximou-se do corpo, observando a falta de respiração e do batimento cardíaco e pensou: “Electricidade!” De seguida, após uma breve inspecção às tomadas e a um candeeiro dourado que encimava uma alta copeira, arrancou em corrida até ao canto da sala, baixou o candeeiro, desligou a ficha da tomada, arrancou a ponta do fio que ligava ao candeeiro, ligou a ficha numa tomada mais próxima do corpo tombado e, segurando o fio descarnado, que despontava em dois, encostou levemente, primeiro o fio azul, depois o vermelho, à barriga do senhor Martins, pensando: “dois segundos devem chegar”. E bastaram, pois após uma convulsão, o senhor Martins recuperou os sentidos.
Foi sorte. Ninguém duvide da estupidez do gesto de Sérgio. Foi sorte e tudo poderia ter corrido de forma muito diferente (tudo poderia ter corrido muito mal), mas naquele momento correu bem e isso – até para o seguimento e interesse da narração - é que interessa, tornando-se num momento definidor da vida que se seguiria daí em diante. A palavra espalhou-se e não tardou muito até os seus serviços voltarem a ser requisitados, primeiro só em casos de dita emergência, depois já como alternativa à medicina tradicional de centros de saúde, filas, consultas, taxas, hospitais e atendimento demorado, ainda mais numa aldeia remota, uma aldeia distante de qualquer centro hospitalar ou meio de transporte que possibilitasse uma assistência rápida. Aliás, também por isso e por uma questão de comodidade de todos, a aldeia não era estranha a soluções inventivas de remedeio às deficiências dos serviços, ideias forçadas à institucionalização. O correio funcionava por recreação do senhor Rui da mercearia, que se deslocava todas as manhãs à cidade mais próxima, trazendo as novas de familiares amigos e cobradores da luz, água e bancos, tudo numa caixa no meio da hortaliça e das bananas, como quem diz os vegetais, as frutas, o pão e todos os víveres diários que venderia mais tarde no seu estabelecimento. Pensando bem, o senhor Rui também era a farmácia.
Mas em questões de saúde e de electricidade - motivo desta crónica - nomeadamente as que dizem respeito a intervenções terapêuticas mais arriscadas, não convém brincar e Sérgio, acolhendo a função social que lhe haviam atribuído, teve de pronto a noção clara da responsabilidade da sua tarefa, sentindo-se na obrigação de aprender. Fê-lo indubitavelmente, estudando em profundidade a anatomia a partir de um livro que tinha visto a primeira vez em casa da sua tia Irene (um livro que lhe tinha despertado a atenção pelas imagens de corpos em metades e com riscos azuis e vermelhos que percorriam as figura desde os dedos dos pés e das mãos à cabeça, mas em especial uma imagem - que eram duas - das partes íntimas do homem e da mulher, uma imagem com a sugestiva legendagem de aparelho reprodutor), tendo também aprofundado o seu conhecimento, por si só vasto, da electricidade em vários livros que o senhor Rui trazia da biblioteca da cidade, passando horas com ratos e gatos, aplicando e anotando num lisbonense de capa preta as diferentes cargas e os seus efeitos nos mais variados sistemas. Em pouco tempo, deixou de ser um mero amante da electricidade para ser um profissional da mesma... nunca deixando de amá-la! Curava todo o tipo de maleitas – podia aliás ser este o título do seu anúncio no jornal da cidade –, desde simples constipações com uma voltagem reduzida, mas continuada, a furúnculos e quistos com uma dose eléctrica superior, embora mais rápida e localizada, até àquelas doenças que ninguém usa nomear pelo temor que instauram nas pessoas, e não tardou muito a ter clientes para todos esses problemas médicos, clientes afáveis que o consultavam de forma confessional e que lhe pagavam de acordo com as suas possibilidades, e a verdade é que, para além de tudo, graças a uma simples mistura de agulhas de acupunctura, eléctrodos e panos húmidos, a electricidade lá ia funcionando.
(João Freire)