22/01/2008

Embaraço

Na rua,
No meio da avenida principal
Na chuva,
Cheio de frio,
Sem roupa e sem dentes
- Sempre sem dentes -
Tão vulnerável, perante o olhar de todos os que conheces,
Reduzido ao limite, à pena
À vergonha de quem tu amas a ver-te assim
Motivo de troça
E apenas as mãos para tapar tudo:
O frio, a chuva, o corpo escanzelado que treme, o embaraço!
Porque não aquele sonho em que voas?
Sempre adorei sonhar que voava
O medo de saltar, o prazer de voar
Sentir
Mas não é esse o sonho que sonhas
Sonhas agora que és um nú desdentado e molhado
Olhas para baixo na esperança vã do não reconhecimento
As faces ruborescem
É o embaraço
E uma sensação de calor invade o teu corpo
Primeiro nas pernas, depois na alma
Só depois acordas,
Lamentas-te pelos sonhos que não gostas
Tens oito anos e mijaste a cama
Lamentas o embaraço.
Sonhas com uma vida melhor sem teres sequer vida
Falta-te um termo de comparação,
Que sabes tu da vida?
Daqui a oitenta anos, sem te aperceberes
O mesmo embaraço
E tu a lamentar-te
A recordares a tua vida de criança
Quando tinhas oito anos e tudo era perfeito
Mas é tudo um sonho
Nem oito nem oitenta
Algures pelo meio
E outros embaraços

(João Freire)

Reaproveitado para o desafio de Novembro da Fábrica de Letras, subordinado ao tema "Sonhos".

4 comentários:

ipsis verbis disse...

LINDO! (caramba)

Anónimo disse...

Grande veia filosófica, com mistura poética e uma excelente visão humanista!
Por falta de endereço:Miguel Salvado, Almada; filho de pai valverdense.

Briseis disse...

Johnny, caraças...! muito bem!!! Muuuito bem mesmo!

Johnny disse...

Briseis, obrigado :)