Houve um tempo em que o sistema educativo de Portugal funcionava, um tempo em que as crianças aprendiam na escola a identificar os rios todos de Portugal de Norte ao sul, da nascente à foz - contando com os afluentes, claro -, assim como os nomes das províncias de aquém e de além-mar e sabiam a tabuada de trás para a frente e de frente para trás, de cor e salteado.
Uma quarta classe bem tirada nesse tempo equivaleria hoje a uma licenciatura.
Era um país melhor, num tempo melhor, com gente melhor lá dentro, com trabalho, saúde e dinheiro.
Tretas!
Foi nessa altura que nascemos.
Esse mundo era o nosso país, orgulhosamente fechado, onde tudo era produzido e tudo era consumido, onde todos os que arranjavam trabalho, de aprendizes a mestres, garantiam um emprego para a vida, com direitos e regalias, uma família, um carro e uma casa.
Com a liberdade, um estado social ao nível dos melhores, e Portugal na bolina rumo ao desenvolvimento.
Tínhamos tudo à mão de semear, uma mão beijada, sem trabalho nem esforço e tudo graças a essas gerações que tinham combatido lá fora e cá dentro por nós, seus filhos e netos, e pela liberdade e prosperidade de Portugal. E nós, esses mesmos filhos e netos, não lhes dávamos o devido valor. Não sabíamos nada, diziam. Crescemos em Portugal com esse estigma, mas apenas estávamos desinteressados. Estudámos até tarde sem nos preocuparmos em ter um trabalho aos 20 e uma família constituída aos 30, ouvíamos música e saíamos à noite com os amigos, a geração dos doutores e engenheiros que não sabia o que era a vida real.
Entretanto o mundo real transformava-se e Portugal acompanhava essa transformação. A adesão à CEE, os fundos europeus, a moeda única, o mercado global, um castelo de cartas apoiado em nada que viria a desmoronar-se.
A geração que conquistara tanta coisa perdera tudo. A escola que os ensinara tão bem não os preparara para este novo mundo para lá de Vilar-Formoso, cheio de tecnologia e informação, o trabalho que tanto cultivaram era deslocado para um país longínquo e a vida que planearam desde a infância fugia-lhes debaixo dos pés para nunca mais voltar.
Os jovens por outro lado habituavam-se facilmente a este novo mundo de telemóveis, Internet e recibos verdes (a precariedade sempre fizera parte da vida profissional deles). Os novos trabalhos pareciam feitos à medida deles.
Uma geração de Doutores e Engenheiros a trabalhar no atendimento ao cliente, a servir mesas, a distribuir panfletos nas caixas de correio, a vender de porta-a-porta, até a trabalhar na agricultura! E sempre a precariedade.
Os mais velhos, incapazes de lutar neste novo mundo que lhes fugiu ao controlo, demasiado velhos para trabalhar e ainda longe da idade da reforma, olham agora para os seus direitos adquiridos com alívio, reformando-se mais cedo, afundando ainda mais o sistema que conduziram desde o seu apogeu à falência, à custa de uma geração cheia de deveres mas que nunca terá os mesmos direitos.
Mas há uma revolução que se avizinha. Não será a revolução de golpe-de-estado que vemos anunciada a cada dia quando sobe a gasolina ou se instalam os pórticos nas SCUT, mas uma mais importante, uma revolução moral, apolítica, assente em valores filosóficos e não económicos.
Nunca perceberam que o nosso desinteresse era condescendente.
E será esta geração, a geração que vos serve às mesas, atende os telefones e lhes vende o pacote de TV, telefone e Internet a protagonizar essa revolução, fazendo o seu trabalho, o melhor que sabe, mostrando-se preparada para fazer qualquer coisa, em qualquer lugar, em qualquer condição, ocupando passo-a-passo os lugares de poder de um mundo que já não é o país, um mundo tecnológico, interligado, que exige os mais variados conhecimentos, um mundo no qual a tabuada terá pouca importância e a nascente do rio Mondego não terá nenhuma… e fá-lo-emos muito melhor, a recibos verdes, se for preciso, para lhes pagarmos as reformas.
(João Freire)
Revolution - Jim Sturgess
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10 comentários:
Gosto do texto. Não podia discordar mais do início do post, mas concordo com a parte final.
1º- "Era um país melhor, num tempo melhor, com gente melhor lá dentro, com trabalho, saúde e dinheiro". Não posso concordar com esta frase. Era um País fechado, em que as pessoas não podiam dizer o que pensavam, porque iam presas, onde só estudava para além da tão famosa 4ª classe quem tivesse dinheiro, que esse era um bem escasso e só ao alcance de uns poucos. Muitos emigraram, os outros trabalhavam de sol a sol, por um punhado de tostões ao fim do mês. Carro?! Televisão?! Viajar?! Sabiam lá o que era isso. E depois ainda havia a guerra, lá longe, onde uns lutavam e perdiam a vida enquanto outros viviam bem, muito bem.
Depois veio o 25 de Abril, com as coisas boas (muitas) e os exageros (maus) próprios de uma revolução. O ensino liberalizou-se. Tirar uma licenciatura estava ao alcance de muitos. Havia emprego, era bem remunerado.
Mas o mundo continuou a transformar-se, alguns dos idealistas transformaram-se em individualistas, em vez do bem comum a palavra de ordem era (e continua a ser) "primeiro eu, segundo eu e depois eu". As pessoas queriam cada vez mais, muito mais que aquilo que podiam pagar, deslumbraram-se por uma vida fácil, os filhos gostaram dessa vida fácil, mas os excessos levam à decadência, e estamos no estado em que estamos.
2º- Esta geração têm tudo para ser ela a fazer a revolução, seja lá do que for. Mas isso digo eu há 5 anos que será esta a geração que tentará acabar com o estado de insustentabilidade em que se vive. E sabes porquê?! porque não tem absolutamente nada a perder. Não tem emprego, não têm dinheiro, não têm perspectivas e se querem (ainda) ter um futuro vão ter que lutar por ele... e muito.
Texto magnifico sobre o problema(?) geracional em Portugal.
Estou há quase uma semana para dizer algo sobre isto, mas tem-me faltado a vontade.
E agora, que aqui, como num outro blog, essa situação foi aflorada de uma forma tão correcta, duvido que valha a pena fazê-lo.
Pronúncia, essa parte do início era suposto ser irónica. Sendo assim, receando que mais alguém se perca na finura das minhas incapacidades sarcásticas, acrescentei um "tretas!"
:)
Pinguim, obrigado. Eu não sou muito de pôr as mãos no fogo por ninguém... mas acredito que no meio desta geração que é a minha há muita gente boa... como haveria nas duas ou três anteriores, mas tendo sido nós acusados de sermos a "geração rasca" quando somos a geração que sabe mais na história da humanidade, e a geração dos "doutores e engenheiros" quando a maior parte dos licenciados nem gosta que os tratem como tal... importa tentar equilibrar a "guerra". E as gerações anteriores têm muita culpa do estado em que isto se encontra.
Johnny, pareceu-me ironia, mas era uma frase "tão séria"... mas assim com o "tretas" já não há dúvidas.
registo o optimismo imanente.
Pronúncia, é apenas uma série de chorrilhos que todos fomos ouvindo e que daqui a uns anos vamos dizer aos mais novos, mas aí... eles é que têm de se levantar contra nós...
Eu confio na minha geração.
Moyle, confio... que queres que te diga, confio.... mais que não seja, confio em dois ou três :)
Hmmm... Eu quase que concordo com o teu texto. Mas este quase afinal não é assim tão pequeno. Infelizmente, a excepção não é a regra e muitos jovens de hoje não aprenderam a pensar. Houve uma expansão do facilitismo, precisamente porque não tinhamos de saber as proposições, a, ante, após, blá, porém, etc., e assim se começou uma pedagogia do aprender a aprender sem de facto de aprender nada. Falaste há uns posts abaixo dos Grandes Portugueses e muitos jovens hoje nem sabem o que foi o tratado de Zamora ou Tordesilhas. Claro que precisamos de uma revolução, mas só vontade e empenho não chega: é preciso qualidade no pensamento. É preciso que esses mesmos jovens saibam o que querem revolucionar. Claro que é uma extrapolação, há muita gente desta geração um dia chamada de "rasca" que sabe e pensa, mas das duas uma, ou pensa ir lá para fora, ou vê-se obrigada a aceitar o que o país ainda tem para lhe oferecer. Que é pouco ou quase nada, para a maioria das pessoas. Sim, temos tudo para fazer a revolução. Concordo nesse ponto. Mas a grande maioria, a massa dessa revolução, poderia deixar muito a desejar. Queria acreditar que não, mas é como o "optimista cé(p)tico" do Jorge Palma.
Contudo, gostei do texto e da reflexão.
Vita C, e a culpa de esses jovens não terem aprendido a pensar é de quem? De quem os ensinava na altura... A minha professora da primária, por exemplo, disse-nos que nós não flutuávamos na terra por causa do peso do ar em cima de nós.
A questão não é saber ao certo qual a geração que sabe mais, mas sim a de sermos uma geração que foi gozada por sermos burros e despreocupados, a tal "geração rasca" (muitas vezes até com razão, devido ao facilitismo de que falas, etc), mas que se tornou numa geração preparada, que se adaptou bem às mudanças, especialmente no acesso à informação, e que tem uma consciência política e social mais abrangente.
Muito bem apontado! É esta a situação ridícula em que caímos...
Bravo, bravo! (palmas!)
B, obrigadinho :)
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