11/10/2009

Encher chouriços com um ensaio sobre a felicidade feito há algum tempo a propósito de algo

Admiro imenso quem procura a felicidade, quem arrisca tudo na incerteza de um futuro melhor. Não sabem o que querem, mas sabem precisamente o que não querem. São os sonhadores, os eternos sonhadores.

«Não sei para onde vou. Sei que não vou por aí!»
José Régio, poeta, em Cântico negro

Curiosamente, são estes sonhadores os que sofrem mais com a utopia da felicidade que procuram. Permanentemente insatisfeitos com a falta de algo que não sabem bem ao certo o que será, vivem na agonia constante da insuficiência. Há sempre algo que falta… e o que falta? Falta a felicidade. E o que será a felicidade?
Falar de felicidade em termos absolutos é algo difícil que deixa muito lugar àquilo que cada um entende como tal. A felicidade de um será necessariamente diferente da felicidade de outro e essa é só aquela que eles percebem como tal e nunca a real, a absoluta, que será obviamente mais difícil de definir.
Podemos concentrar a definição de felicidade em determinadas coisas que queremos obter ao longo da nossa vida, mas nenhuma delas, per si ou em conjunto, conseguirá garantir um sentimento de felicidade se não houver uma conjuntura de estados de espírito, de formas de pensar e agir que vão de encontro àquilo que nos faz felizes. Se conseguirmos hoje tudo aquilo que pensamos que nos fará felizes, arranjaremos logo a seguir algo novo a desejar. Tendemos para o negativismo, porque tudo na vida segue esse postulado negativista, com o epítome da deterioração e da morte e não precisamos de somar a esse negativismo o fracasso na obtenção de algo que não conhecemos muito bem. Procuramos a felicidade lá à frente, sabendo que o tempo, que a beleza e tudo o resto se esvai e, pensando em tudo isto, é fácil deprimirmo-nos.

«This is your life, and it's ending one minute at a time (esta é a tua vida e está a acabar minuto a minuto)»
Chuck palahniuk, escritor, em Fight Club

Mas é por pensarmos e por sabermos que isso adianta pouco, que nos apercebemos – ou deveríamos aperceber – que a visão teleológica da felicidade pouco acrescenta. Ao contrário, prejudica. A felicidade, tal como o bem, a justiça, o amor ou qualquer outro axioma psicológico, social ou filosófico, visto como uma meta, torna-se irrelevante porque o olhar se perde ao longe em vez de reparar no que é imediato, daí que devamos afastar-nos da sua ‘grailização’. A felicidade não se aspira, vive-se e constrói-se. É um lugar-comum dizer isto, mas é verdade.

«Ficar a olhar com uma esperança ociosa equivale a deixar passar a vida em devaneios.»
Yann Martel, escritor, em A vida de PI

A felicidade é apenas um balanço em retrospectiva do que fomos, obtivemos e fizemos e não uma lista de compras à qual vamos juntando vistos.
Seguramente que há requisitos. Penso sinceramente que ninguém conseguirá ser feliz sem um sentido de compreensão, assente especialmente no auto-conhecimento e no entendimento dos outros e do mundo, que permitirá reconhecer os defeitos e as virtudes de tudo o que nos rodeia corrigindo o que se pode mudar, aceitando o que não se pode, valorizando tudo o que de bom existe – especialmente nos outros (que é onde é mais difícil ver), porque esses outros também são indispensáveis à nossa felicidade, e no mundo –, desvalorizando o mau e o negativo, afastando-nos dele, garantindo assim a humildade necessária para navegar pela vida sem ressentimentos, numa aprendizagem constante com a qual crescemos.

«nosce te ipsum (conhece-te a ti mesmo)»
Inscrição mítica no Templo de Apolo, em Delfos

É certo que as dúvidas nos poderão esmagar e, muitas vezes, acabaremos por nos enganar uma e outra vez, mas se não fossem os enganos do passado nunca teríamos as vitórias do presente e nenhuma derrota deve ser suficiente para desarmar a força de uma consciência tranquila. Por isso, não faz sentido, podendo até cair no ridículo quem o faz, afirmar que não existem arrependimentos no passado.

«Um homem que nunca faz erros é um erro da natureza.»
Leonid S. Sukhorukov, autor de aforismos

Sem dúvida que há arrependimentos (tem de haver), porque não haver é presumir uma impossibilidade. Mais do que defender que não nos arrependemos de nada, devemos reconhecer tudo o que de mal vamos fazendo ao longo da vida, admitindo as nossas acções e as suas consequências, assim como o seu impacto nos outros, a fim de tentar emendar esses erros e de evitar que esses erros e outros se reproduzam no futuro, para que possamos sentir que fizemos o que tínhamos a fazer. Tudo o resto está fora do nosso controlo.

«Arrependo-me muitas vezes de ter falado, nunca de me ter calado»
Públio Siro, escritor latino da Roma Antiga

A infelicidade também é a memória do que fizemos mal, batalhas perdidas e quase esquecidas, histórias do passado que não soubemos resolver e que afinal estão bem presentes em nós. Isso evita-se com sinceridade.
«Ama a verdade, mas perdoa o erro»
Voltaire, iluminista

Não devemos pensar que queremos ser felizes, mas sim no que fazer para tornar melhor o momento que estamos a viver. E isto é tão verdade num encontro a dois, como num jantar de amigos ou durante um dia de trabalho no escritório. Fazer alguém rir, aprender algo novo, ver algo que nunca vimos, partilhar, sentir! Tudo isto pode ser feito em qualquer altura, mas sem forçar. Só temos de estar atentos e dispostos a fazer de um momento qualquer das nossas vidas um momento de felicidade.

«Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.»
José Saramago, escritor, em Ensaio sobre a cegueira

O somatório desses momentos traduzir-se-á na felicidade que procuramos, a absoluta, uma felicidade verdadeira que permanecerá na nossa consciência e na dos outros, sobre o que somos e sentimos e, claro, no que fazemos. Se vivermos a vida, aproveitando tudo o que de bom existe nela, de acordo com aquilo que acreditamos ser o melhor, viveremos de forma mais feliz.

«Só existem dois dias no ano em que nada pode ser feito: um chama-se ontem e o outro amanhã. Portanto, hoje é o dia certo para amar, acreditar, fazer e principalmente viver.»
Tenzyn Giatso, Dalai Lama

Exigirá esforço; não é fácil viver, mas o que mais custa é começar.


(João Freire)

18 comentários:

etak disse...

Em primeiro : Gostei muito do texto.
Segundo:
O que mais custa é tomar o balanço do começo, depois a partir dai tudo flui de uma maneira que às vezes nem nós conseguimos controlar!
Terceiro:
A felicidade é um objectivo, que todos temos consciente ou inconscientemente, raramente encontramos alguém que não pense em ser feliz, não acredito em felicidade plena, pois nada é perfeito e a felicidade plena soa a perfeição, acredito na relativa mas ao mesmo tempo inconstante, nunca temos uma felicidade duradoura, há sempre adversidades.
Tudo é relativo,mas nada é impossível, também acredito que a felicidade é um meio de completação, ou seja, é no outro que vimos a peça do puzzle onde se encaixa a nossa felicidade.

«Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.»
José Saramago, escritor, em Ensaio sobre a cegueira

Esta frase sempre ficou marcada na memória , desde que li o livro (desde já digo que gostei muito)

O que nos falta muitas vezes é reparar, não só naquilo que por vezes não nos interessa nada( mas que é aquilo que temos mais tendência a fazer) mas sim naquilo que vai para além da aparência , e isso sim é o mais importante e onde decerto se encontra mais rapidamente a "felicidade".

**

1REZ3 disse...

João,

que belo uso do tempo que tomaste a encher chóriços...

Star disse...

Muito bom mesmo!
Gostei do que li e identifiquei-me muito com o que foi escrito!

Por entre o luar disse...

Apaixonei-me pelo texto =)

Ja li duas vezes*

Moyle disse...

para sermos felizes basta sermos estúpidos.
é que torna tudo mais simples e só os não estúpidos [e estúpidos, embora a jusante, por isso mesmo - porque este argumento é um ouroboros, pelo menos graficamente] podem questionar a sensação de preenchimento dos idiotas, isto é, dos estúpidos a montante.
sejamos claros, é óbvio que os parvos não estão preenchidos [e com isto assumo a minha integração no grupo de estúpidos a jusante], no entanto não sofrem da mais grave enfermidade que afecta os não parvos, isto é, o vazio.

Johnny disse...

Obrigado Etak, isto em primeiro, porque depois, em segundo, não concordo com isso de a felicidade ser um objectivo, aliás, é isso que digo no texto, nem tão pouco com o facto de ser uma completação. Temos de ser felizes connosco e não graças a outro (ou outra), pois isso não é felicidade, é dependência. Temos de amar como os gatos, cada um na sua independência, como diz, Agostinho da Silva, num vídeo - um entre muitos desle - que vale a pena ver:

http://www.youtube.com/watch?v=Rkv-9HTyVvQ

Por fim, para discordar mais um pouco, também não concordo com essa obrigação de tudo o que vai para além da aparência ser melhor do que o que é aparentemente melhor. Às vezes, o que é melhor aparentemente também o é profundamente e nem tudo o que é feio por fora é bonito por dentro.

Não há receitas, há tentativas... cada um vai tentando da melhor forma.

Johnny disse...

Obrigado também, caro 13.

Não deixando de ser um chouriço, ainda bem que está bem cheio.

Johnny disse...

Obrigado Star. Ainda bem que gostas e que te identificas.

Johnny disse...

Por entre o luar, eu já li três ou quatro e se fico contente de teres gostado, continuo a achar que é um chouriço, ou um chóriço, como escreve ali em cima o 13.

Johnny disse...

Ainda um destes dias pensei nisso quando fazia Zapping e parei, por acaso, na Sic mu... no Discovery Channel (faz de conta) e falavam num programa chamado Opra... no animal Planet sobre uma seita, ou culto ou qualquer coisa, chamada "Yearning for Zion (YFZ), cujos seguidores viviam num rancho isolados de tudo, numa comunidade poligâmica, produzindo num sistema auto-suficiente os mais variados produtos, mas sem acesso à televisão, a livros ou a qualquer tipo de informação que não fosse a religiosa. E a Oprah andou por lá (sim, eu admito que vi aquele programa, mas era em jeito de documentário e às vezes... mesmo nos outros programas FALAM DE COISAS INTERESSANTES E QUAL É O PROBLEMA? Esqueçam!) Dizia eu que ela andou por la´a fazer perguntas, umas melhores, como por exemplo quando perguntou às raparigas se podiam escolher com quem casar (não podiam), outras piores, como quando perguntou de onde vinham os penteados esquisitos.

Informen-se sobre o assunto que é interessante, por exemplo, em http://en.wikipedia.org/wiki/YFZ_Ranch

Aquilo envolve crianças retiradas pela polícia, ao jeito de Waco, com o David Caresh, acusações de violação, etc, etc.

Isto tudo para dizer que eles eram (pareciam) realmente felizes, mas sem o acesso à informação e às maravilhas da sociedade em que vivemos, porque também há maravilhas nesta sociedade de consumo, perguntei-me se valeria a pena ou o que valeria mais, aquela felicidade ingénua ou o conhecimento das nossas insuficiências, acompanhado do conhecimento?

E olha, caro Moyle, ainda não sei... acho que nem sequer sei se serei um dos parvos que dizes ou um dos estúpidos.

P.S. - Ouroboro é muito bom, vale pela palavra em si e sonoridade... 10 pontos!

Por entre o luar disse...

Um enchimento de chóriços brilhante *

E mais não digo.. se não...!

Beijo*
(Obrigado pelas discordâncias, servem e muito para mudar de opinião , caso se justifique)

Moyle disse...

a questão é precisamente essa e o exemplo é do melhor... os estúpidos ficam sempre a ganhar exactamente por não saberem...
se não sabes, não escolhes, se não escolhes, não duvidas, se não duvidas, não sentes nenhum vazio pela infinidade de possibilidades que restam...
agora, que é estúpido não sabe que o é, não se pode tomar essa opção voluntariamente (acho eu), porque caso contrário seria sempre um abandono e isso acarreta o tal vazio, buraco negro da felicidade.
ignorance is bliss e, melhor que isso, era citar o Caeiro mas já é tarde:)

Johnny disse...

Não me lembro de ter discordado de ti, querida Por entre o luar! Eu discordei da Etak, mas não de ti. A não ser que... queres ver...

Johnny disse...

Acho que ficaria bem um Caeiro aqui.

É verdade que a escolha após o conhecimento é impossível, a não ser que seja a escolha daquilo que queremos para quem ensinamos ou criamos... para os filhos, por exemplo.

Mas, Moyle, o que interessa é o Caeiro, até porque assim de repente, só me lembro da Dor de pensar do ortónimo.

Por entre o luar disse...

Lol Tolinho=)

*

Moyle disse...

não pensemos então, como o Mestre (palavras do ortónimo) aconselhava :)

ipsis verbis disse...

E já dizia a Izzie Stevens, personagem da Anatomia de Grey:

"You never know the biggest day of your life is the biggest day. Not until it’s happening. You don’t recognize the biggest day of your life, not until you’re right in the middle of it. The day you commit to something or someone. The day you get your heart broken. The day you meet your soul mate. The day you realize there’s not enough time, because you wanna live forever. Those are the biggest days. The perfect days…."

Johnny disse...

Eu acho que olhamos para o "melhor dia" no passado, quando percebemos que no melhor dia estávamos a pensar se aquele seria ou não o melhor dia. Vá-se lá saber... Era!