(Os cubos de gelo que deitas para o copo fazem um barulho que me irrita.)
Não lhe disse
- Não quero que isto acabe assim – disse eu.
(O barulho do líquido castanho claro a escorrer para o copo.)
Ele não diz nada, pegando numa colher.
(A colher a mexer o gelo, a bater no copo num tilintar tão irritante.)
Detesto Whiskey e não percebo porque é que ele o mexe.
- O whiskey não se pode beber logo – explicou – isto tem uma ciência. Eu nem devia pôr gelo, porque não se põe gelo num puro malte, mas assim é mais rápido para o ‘domar’. É preciso esperar, cheirar, provar, deixá-lo amaciar no copo e na boca por um momento e beber…
(A colher a bater no copo e pousada na secretária de madeira. Acho que era mogno.)
- Já deve estar – disse ele.
(O levantar do copo até aos lábios, o gelo a tilintar nas paredes do copo e o líquido a escorrer para a boca dele.)
- Pensa bem nas consequências, por favor.
(Um leve saborear, de olhos fechados, e um “ah” enorme, também irritante, enquanto deambulava à minha frente.)
- Não há cá misturas, nem irlandês, nem americano… Este é o verdadeiro! Os escoceses é que sabiam fazer esta merda, pá.
Pousou o copo.
(Agora é o maço. Se soubesses o que esse barulho do plástico faz aos meus nervos, homem, nem abrias o maço.)
Tirou o plástico, pousou-o na secretária ao lado do copo e, segurando o maço com o polegar e indicador da mão direita, começou a batê-lo lenta mas decididamente nas costas da mão esquerda.
(Há dois minutos que está nisto. Pára de bater essa porcaria!)
Pensei mas não disse. Pensava também no que poderia dizer.
(Tudo isto me irrita.)
Não lhe disse.
(Um cigarro Dunhill, um isqueiro retirado do bolso interior do casaco de caxemira, uma chama amarela e verde, duas baforadas sonoras para acender o cigarro e uma passa. Depois um novo “ah”, este pelo cigarro. O isqueiro apagado voltou ao casaco.)
- Um cigarrinho e um gole de Whiskey! Haverá melhor?
(Eu dizia-te o que é que era melhor do que isso.)
Não disse.
(Novo levantar do copo até aos lábios, o gelo, o líquido, o escorrer, o saborear… o nojo que tudo isto me mete. Depois uma passa no cigarro.)
- Você sabe que as mulheres…
Ele olhou para mim furiosamente, depois parou, amenizou a expressão, virou-se e tornou a beber.
(Copo, lábios, o gelo, líquido, escorrer, saborear e o “ah”. Depois uma passa.)
- Podia passar aqui a tarde a explicar-te o que é um puro malte, single malte, das terras altas escocesas…
(Tudo isto me irrita profundamente.)
Controlei-me.
(Apetece-me matar-te.)
Não lhe disse. Afinal, eu é que estava sentado e amarrado na cadeira.
(Copo, lábios, gelo, líquido, escorrer, saborear, “ah”. Depois uma passa, um travo prolongadíssimo, outra passa e o exalar do fumo.)
- Vamos lá então.
Decidido, pousou o copo com força, depois apagou o cigarro num cinzeiro que se encontrava na secretária, enquanto passava por trás dela, abriu uma gaveta, fechou-a e dirigiu-se a mim. Fiquei com medo.
(O meu corpo aquece, sinto a minha cabeça a inchar, como se estivesse com febre, ele encostou alguma coisa à minha cabeça, talvez metal, talvez aço, penso que poderá ser uma pistola, uma explosão e depois uma sensação suave… um bem-estar estranho. Depois um zunido… um barulho agudo muito irritante que crescia cada vez mais e, por último, o silêncio.)
Não me conseguia mexer. Lembro-me que a última coisa que senti foi medo… algum medo e algo quente a escorrer pelas minhas pernas.
(João Freire)
Recordado para o tema
"Disparou" num desafio da
"Fábrica de Letras".