30/04/2012

MEC

"Às vezes encontramo-nos com a cabeça nas mãos. Tudo o que poderia ter corrido bem correu mal. O mundo, que era igual à vida, afasta-se de repente. Distancia-se e continua a existir, como se nada tivesse a ver ou a haver connosco, como se fizesse questão de mostrar a independência dele, mundo, que não existe só porque nos damos conta dele. A má notícia é má, mas a pior, para quem cá está, é a pessoal. A minha pessoa é a Maria João e a Maria João passa mal. Nem o amor nem a sabedoria médica a podem salvar. Só uma conjunção das duas coisas, mais um acrescento de milagre. O cabrão do cancro alastra-se. Exterminado no pulmão ou na mama, foge para o cérebro, onde se refugia e cresce. Forma uma força da morte, aproveitando as barreiras antigas entre o sangue e o cérebro, que infiltra conforme lhe apetece. Hoje, domingo, é o último dia em que estaremos juntos, dois amores, felizes há quase vinte anos. Amanhã, logo às nove da manhã, estaremos na consulta dos excelentes neurocirurgiões do Hospital de Santa Maria, onde nos avisarão das complicações possíveis. Obama deveria inspirar-se na perfeição clínica e humana do serviço de saúde português e francês. Mas a dor não diminui. Nem a tristeza abranda. Vai morrer o meu amor. Não vai. Como o meu amor por ela, nunca há-de morrer. As coisas acontecem sem acontecer o pensamento nelas. A alma, o coração e a cabeça são coisas diferentes. Que se dão bem. E são amigas. E deixam de ser quando morrem."

Miguel Esteves Cardoso, in Público.

(Por esta altura, já muita gente partilhou isto, mas se há coisas que merecem ser repetidas, esta é seguramente uma delas)

8 comentários:

João Roque disse...

Sim, eu já li, mas dizes bem, um exemplo de amor assim,mpor muito triste que seja, é sempre de realçar.

Johnny disse...

E há outra coisa que a mim me importa e realço: é que ele escreve sempre bem, apesar de tudo e tudo.

Catsone disse...

Ainda não tinha lido. A caneta escreve sempre melhor quando orientada pelo coração...

Fê blue bird disse...

Ainda não tinha lido, comovente!
Obrigada pela partilha
Bjs

Briseis disse...

Dos muitos textos lindos e comoventes que o MEC já nos trouxe, este toca-nos mais fundo porque é brutal e inesperado... E, não fosse a escrita dele em si tão sincera, nós entenderíamos na mesma, porque infelizmente já todos vivemos de perto este drama...

Moyle disse...

este gajo escreve magnificamente...

Eva Gonçalves disse...

Já tinha lido... mas fizeste bem em publicar. Emociona mesmo...

Johnny disse...

Catsone, depende... se for o coração literal... diz que não escreve muito bem... a cena do polegar oposto e tal... e respinga tudo de sangue :)

Fê... é para não seres a única a mostrar cenas fixes :)

Briseis, e todos lhe chamamos "cabrão" e nunca um insulto foi tão bem empregue.

Moyle, é concensual!

Eva, é daquelas coisas que merece.