13/01/2011

Tanto melhor

"Sou um homem doente… sou um homem mau. Um homem repulsivo, é isso que eu sou. Acho que tenho alguma coisa no fígado. De qualquer modo, não entendo que raio de doença é a minha, não sei ao certo o que me faz sofrer. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite a medicina e os doutores. Além do mais, é intolerável como sou supersticioso; enfim, o suficiente para respeitar a medicina. (Sou bastante instruído para não ser supersticioso, mas sou supersticioso.) sim, é por maldade que eu não me trato. Aposto, meus senhores, que isso é uma coisa que não compreendeis. Mas eu, sim! Evidentemente, não serei capaz de explicar-vos a quem ando eu a tramar seguindo deste modo a minha maldade; sei perfeitamente que não ando a tramar os médicos quando recuso tratar-me; sou a pessoa mais bem colocada para saber que isso só a mim prejudica e a mais ninguém. Mesmo assim, se não me trato é por maldade. Dói-me o fígado. Tanto melhor, pois que me doa ainda mais!"

in Notas do Subterrâneo, de Fiódor Dostoiévsky

*Obra integral, em inglês, aqui.

Blur - Out of time

23 comentários:

Pronúncia disse...

Será que é esta a origem da expressão "ter maus fígados" para caracterizar uma má pessoa?!...

meldevespas disse...

caramba!
isto soa a uma daquelas penitências castigadoras!

mz disse...

Este homem é Sádico, teimoso e deveria pelo menos fazer uma dieta!

Marta disse...

conheço malta assim, mas não sabe escrever como ele. o que é uma pena!

Johnny disse...

Pronúncia, não sei se será origem, mas faz-me sentido a ligação entre fígado e más pessoas no sentido em que quem sofre do fígado deve estar sempre mal disposto... e arrotar muito... a azedo... and so on :)

Mel, acho que há pessoas (quem, quem?) que para além de hipocondríacas têm a mania da conspiração e da vitimização... ou têm apenas lampejos de lucidez porque se calhar estão doentes, são mesmo más e ninguém gosta delas :)

MZ, por falar em dieta, eu deixei de beber cerveja. Até quando é que não sei...

M, vou levar isso como um insulto à minha pessoa, porque eu também sofro do mal de vitimização :)

su disse...

a expressão "ter maus fígados" chega-nos do oriente. segundo a medicina tradicional chinesa, o fígado[gan] comanda o fluxo suave do qi[energia] por todo o corpo.a estagnação do fluxo do qi do fígado desequilibra o fluxo emocional, produzindo sentimentos de frustração, irritabilidade e a raiva. ou seja, sempre que aquela vontade de espetar um garfo ferrugento à primeira pessoa que nos contrariar surja, trata-se somente de um desequilíbrio energético no nosso fígado.

abraçinho...

Pronúncia disse...

caminhante, obrigada pela explicação. Gostei de saber a origem da expressão "maus fígados"... afinal o mal do fígado sempre está ligado ao "mau humor".

Bom resto de domingo :)

Marta disse...

vou encarar isso como uma vitimização :)
bolas! tu escreves bem! toma isto como um elegio (sincero)

Johnny disse...

Caminhante, acho que a minha explicação para a dúvida da pronúncia era melhor, mas prontosS... ela lá te agradeceu, vocês que fiquem com a vossa ideia...

Pronúncia, nem acredito que preferiste a explicação da caminhante em detrimento da minha!

M, não sei... eu também sou desconfiado... mas gosto de fazer de vítima, gosto, só para chatear :)

Pronúncia disse...

Johnny, mas a tua explicação complementa perfeitamente a da caminhante, não percebo porque ficaste chateado... serão os teus "maus fígados" a revelarem-se?! ;D

Johnny disse...

Pronúncia, sim.

Pronúncia disse...

Bem me parecia :D

MAR disse...

Boa noite!
A expressão “maus fígados”, de uma forma simplista tem origem na teoria dos 4 humores, da escola hipocrática. Esta teoria seria a definição de saúde e de doença existente entre o séc. IV eo sec.XVII. Ser ou não saudável dependia do equilibrio entre os 4 humores.
Os 4 humores eram: o Sangue, a Fleuma, a Bílis amarela e a Bílis negra com origem respectivamente no coração, cérebro, fígado e baço e que resultavam dos diferentes alimentos ingeridos.
Cada humor associa-se a diferentes qualidades, por exemplo a bílis é quente e seca. De acordo com o predomínio de cada humor os seres humanos caracterizavam-se em diversos tipos fisiológicos, se predominasse a bílis amarela definia o tipo bilioso ou colérico. O tipo bilioso caracteriza-se por um ser amargo, com mau temperamento e com tendência a irritar-se facilmente.

Briseis disse...

Que personagem extraordinário... Um bocado avariado mas, ainda assim, extraordinário!

Johnny disse...

MAR, pela minha parte, obrigado pela partilha de informação interessante :)

B, escreveste exactamente aquilo que eu gostaria de ver no meu epitáfio.
(note-se que o "gostaria" também incide na parte do ver depois de morto, o que pressuporia a existência de uma consciência - que ainda por cima teria a capacidade de ver - depois da morte)

RN disse...

É bom ler algo assim, estas personagens com diferente modo de pensar fazem-nos sempre repensar.
Muito bom :)

Johnny disse...

Rita Norte, diferente? Eu não tenho um modo de pensar diferente. Eu penso quase textualmente a mesma coisa que está ali no texto... quase :)

Moyle disse...

este homem é judeu. não sabes bem o que fez mas sabe que a culpa é dele e que deve pagar por isso.

Johnny disse...

E se fosse católico igual... a culpa é transversal à religião.

Moyle disse...

yah, precisamente. as religiões bíblicas são como clones que não se dão bem entre eles e passam a vida a apontar os defeitos uns dos outros.

Johnny disse...

Moyle, curiosamente a apontar a culpa umas às outras :)

Brown Eyes disse...

ahahahah Terás medo dos médicos e da medicina? Fizeste-me lembrar o meu avô que com a velhice, já com a mente um bocadinho atrofiada, começou a criar medo aos médicos e dizia:
Filha os doutores dão um caldinho amarelo aos velhos para os matarem. Não vou ao médico.
Não ia, não ia mesmo. Morreu durante a noite, sem se queixar, com 89 anos.
Beijinhos

Johnny disse...

mary, acho que não é uma questão de medo... é mais uma questão de hipocondria. Se me acontecer o mesmo que ao teu avô, ainda que com mais uns 40 anos do que ele à data da morte, não me parece muito mal.