Custa-me aceitar que a crítica generalizada se centre em questões superficiais para tentar resolver a crise económica em que Portugal se encontra. É fácil ver por todo o lado panfletos de contestação aos salários milionários de administradores de empresas e serviços públicos, aos custos assombrosos das viaturas de alta cilindrada que o Estado compra, passando pelos desperdícios de algumas prestações sociais com "quem não quer trabalhar", normalmente referem-se aos ciganos. Haverá algum sentido nessas críticas? Sim... tirando a parte racista./xenófoba da equação, claro que sim, mas eu pergunto qual a importância estrutural dessas questões?
Tudo o que é social implica uma história. O ser-humano funciona com histórias porque é a melhor forma de compreender, interpretar e, se quiser, agir sobre a realidade que o envolve. Para o fazer, o actor social tem de encontrar personagens, heróis, vilões, e depois uma trama na qual os possa inserir. Os heróis são sempre fáceis de encontrar num mundo do faz-de-conta, porque heróis das nossas histórias somos todos, mas os vilões vão variando conforme a trama se desenrola e as informações que nos rodeiam (normalmente filtradas por comentadores políticos ou desportivos) ecoam na nossa cabeça. Um vilão de ontem (os Bancos, os especuladores financeiros e imobiliários e os agentes da bolsa) pode facilmente ser substituído pelo vilão de hoje (Sócrates e o seu Governo). Simplificando, junta-se tudo no mesmo e identifica-se o problema nos ricos.
Normalmente as generalizações simplistas acabam sempre com identificações de problemas simplistas e soluções que seguem inevitavelmente pelo mesmo caminho. Foi assim com as bruxas, foi assim com os judeus, terá sido assim com muitas outras coisas. Agora, corremos o risco de fazer o mesmo com os ricos e eu não tenho razão nenhuma para defender os ricos, mas parece-me acima de tudo que não tenho razão para os criticar só pelo facto de o serem. Ser rico não é crime. Crime é roubar, corromper, abusar de um qualquer estatuto para obtenção de lucro e é crime quando é perpetrado por um rico ou um pobre.
|
Fig.1 |
Hoje vi isto (Fig.1). Interessa-me pouquíssimo. Alguns salários estarão inflacionados, outros estarão justos mas as pessoas que lá estão podem não ser competentes e outros salários podem ser justíssimos para a função em causa e as pessoas que lá estão podem ser competentíssimas. Mas isso acontece em todos os trabalhos e em todas as funções. Fazer um pano de amostra com uns nomes e uns números, como se de um cartaz "procura-se" do longínquo oeste americano se tratasse, ´insinuando que aqueles ordenados dariam para pagar o salário de 58 mil pessoas, parece-me demagógico e ineficaz. Ninguém se importa se essas o mereceriam, ninguém se importa sequer que o salário médio de um desses funcionários públicos (900 euros) pudesse pagar a alimentação de 900 crianças na Somália. Servirá este quadro para espicaçar as pessoas? Talvez, mas ainda é preciso espicaçar alguém?
Há nestas coisas um risco de dispersão. Se criticarmos
a compra de um carro de 134 mil euros, deixamos de criticar a compra de dois submarinos por uma soma total de mil milhões de euros. Focamos o acessório, como se o acessório fosse determinante.
O sistema político, social e económico de Portugal é grande e precisa de se alimentar. Para se alimentar tem de aumentar. Quanto mais aumenta, mais precisa de se alimentar. É só isto.
O chamado Estado Social português é dos mais generosos da Europa, poder-se-ia dizer até que é dos mais avançados, mas é desajustado à realidade portuguesa. Não é o dinheiro dos administradores que paga o sistema, não é seguramente o dinheiro de carros de alta cilindrada topo de gama (Citroën diesel, etc.) que paga o sistema.
O que paga o sistema é a produtividade do país. Quando essa produtividade é baixa ou quase inexistente, das duas uma, ou reduz-se o sistema, baixando/congelando salários, reduzindo benefícios ou aumenta-se o sistema, criando novos impostos, injectando capital e investindo. Quem está preparado para perder as regalias que tanto lhe custaram a ganhar? Ninguém! ninguém quer deixar de receber aquilo a que tem direito. Da mesma forma, ninguém quer pagar mais impostos, ninguém quer pagar as auto-estradas ou gasóleo a 1 euro e 50, e por isso todos abusamos do sistema. De certa forma, acabamos também por ser culpados.
Haverá soluções. Eu, por exemplo, imagino que a criação de mais alguns escalões de IRS poderia ajudar no equilíbrio das contas públicas - servindo também para ir buscar algum dinheiro aos mais ricos, para agrado do Robin dos Bosques que há em todos nós -, assim como acho necessária a reformulação da função pública, nomeadamente no que concerne aos seus recursos humanos e à rede autárquica, exigindo-se muito mais rigor na criação e gestão das empresas municipais, por exemplo, acho até que em alguns casos poderia proceder-se à diminuição da duração de algumas prestações sociais, como o subsídio de desemprego, e à revisão ou mesmo abolição de outras, como o "subsídio de natalidade" e o "rendimento de inserção", e veria com bons olhos que se cancelassem algumas das grandes obras. Serviriam? Não sei, mas são hipóteses válidas e mais prementes que assentam na estrutura de um estado mais realista. depois viria a revisão institucional, depois viria a redução dos 230 deputados para os 180, depois viria a reformulação do sistema eleitoral... depois viria o controlo dos salários dos gestores e das viaturas oficiais, depois viria...
Quanto às críticas que se fazem ao Governo, partilho a grande maioria. Sócrates é um incompetente, rodeado por incompetentes, que hão-de ser substituídos por outros incompetentes, mas admitindo até que haverá certamente alguma competência (eu até concordo com algumas das
novas medidas anunciadas) e até acredito que esses incompetentes às vezes tenham acessos de competência e queiram fazer o melhor pelo país, mas partilho a revolta social, partilho por exemplo todas as críticas relativas à prossecução do plano da alta velocidade e até me disporia a uma manifestação com o mote "
Ok, nós pagamos mais impostos, mas vocês não vão para a frente com essa merda do TGV" (a minha ideia de contrato social), mas não alinho nisso dos carros de alta cilindrada e dos salários dos administradores.
Na realidade não há histórias com heróis e vilões bem definidos, nem tão pouco uma história com início, meio e um fim inevitavelmente feliz para sempre. Na realidade, vai-se andando, tentando melhorar sempre, participando, ajudando, sugerindo, reclamando quando há razão para tal e exigindo o que de direito, porque esse é também o nosso direito... e dever.
Quando era novo... quando era mais novo, costumava dizer em jeito de brincadeira pré-eleitoralista que não gostava do Comunismo porque o Comunismo não gostava de ricos e eu contava vir a sê-lo. Substituindo a referência mais antiga por uma mais recente: Francisco Louça, ainda conto vir a ser rico, mas conto também vir a ser uma pessoa melhor, independentemente daquilo que tenha ou não no banco.
(João Freire)