Sua mãe bateu à porta do quarto, como de costume, e chamou-a.
Na sua cabeça chamava-lhe velha e não gostava dela.
Levantou-se na escuridão, percorrendo às apalpadelas os cinco passos até à casa-de-banho, para depois acender a luz. O seu retrato no espelho era neutro e ela olhava para ele como se procurasse algo… Talvez as caras das vozes com quem discutia na sua cabeça, o barulho enlouquecedor no silêncio.
Pegou na lâmina e fez um corte no antebraço. Funcionava para se acalmar, funcionava para acalmar as vozes. Ao lado da ferida no braço, cicatrizes, umas antigas outras recentes, mostrando as tentativas de lidar com o seu ‘problema’, e as veias azuis que ela contemplava profundamente, sentindo-as latejar, apertando a mão com força para que se vissem melhor.
Diagnosticada, internada, normalizada, passara dois anos fora de casa, entre quartos brancos e salas almofadadas que a impediam de se magoar… e a claridade opressiva. Por isso lhe era difícil encontrar lâminas pela casa, por isso a sua mãe entrava de rompante em certas ocasiões, por isso ela chorava sem emitir nenhum barulho ou líquido, sempre um olhar neutro e muita confusão na sua cabeça, como se a sua mente fosse o burburinho de uma cozinha atarefada de um restaurante popular.
O arrastar de móveis e o bater de portas na outra divisão indicava-lhe que tinha mais algum tempo de solidão. Apenas quando o barulho cessava é que sua mãe chegava, mas fazia tempo que não lhe investigava os braços, fazia tempo que ela se preocupara, afinal, bastava um sorriso para que a desculpasse das provas dos medicamentos tomados que antes lhe exigia severamente.
Como sua mãe, que regozijava com os progressos, ninguém na família alargada ou conhecidos em geral diriam que se passava algo com aquela rapariga, fingindo desconhecer que os problemas mais difíceis de todos nós são aqueles que nos atormentam por dentro. Para toda a gente basta uma aparência de felicidade nos outros, para toda a gente serve uma inócua pergunta, “tudo bem?”, seguida de uma resposta ainda mais inócua, “sim”. Não fossem as caixas de lítio compradas por sua mãe numa farmácia do outro lado da cidade de três em três meses e nenhum problema existiria. Daí a estranheza da população quando, após a hospitalização da mãe, aquela rapariga saiu à rua nua como uma criança inocente no seu corpo de 26 anos.
Claro que sua mãe morreu. As pessoas morrem sempre nestas histórias tristes que se contam de ouvir dizer. E naquele dia, antes mesmo de virem os senhores da segurança social e do hospital, apenas restou o silêncio na casa. Todas as janelas estavam fechadas. No quarto, sentada na beira da cama, olhando um espelho grande na parede, uma rapariga e uma lágrima apanhada com um dedo inquisidor para o qual olhou, vendo-o molhado, a prova de que apesar de tudo sentia.
(João Freire)
Tindersticks - Tiny Tears
Para o tema
32 comentários:
O sentir está sempre lá... se bem que às vezes adormecido.
Está bom. Lê-se bem e é agradável.
Há uma ou outra palavra repetida e uma frase que não me está a soar muito bem, mas gostei. =)
*
'Drive' dos Cars... foi o que este texto me lembrou. A sana insanidade de quem apesar de tudo também sente.
Bjs
A primeira coisa que me lembrei enquanto lia o texto foi em auto mutilação.
Porque é que há quem se auto mutile? Foi a pergunta que me fiz a mim própria. Será porque não sentem e querem sentir?! Ou será, porque no fundo sentem até muito mais do que o que deveriam sentir... não sei responder.
Sim, Ginger, concordo... até já reli e mudei algumas coisas... na expectativa de que agora achasses que está perfeito! I can only hope.
Tenho de admitir que me lembrei de várias, Helga, mas nenhuma foi essa, aliás, pelo nome nem me lembrava de qual era... mas fui recordar e ouvir... espectacular!
Pronúncia, boas perguntas... penso que haverá várias razões, para sentir e para não sentir, por exemplo, mas apenas cooncordaremos todos que não será muito saudável nem viável.
Sim, não é nada saudável, nem viável... mas os extremos nunca o são!
Ontem até fiquei a pensar na história da auto-mutilação e lembrei-me da comichão, que nunca conseguimos parar, assim como o arrancar das crostas antes do tempo, ou seja, para responder à tua pergunta de ontem, sobre o porquê de haver gente que se auto-mutile, acho que deve haver uma dose de dor e uma dose de prazer, tal como nestes casos mais familiares.
Jóni, quem almeja a perfeição não pode bater bem da cabeça. ^^
oxx
É uma perfeição limitada à minha capacidade de escrita e à tua capacidade de crítica :)
Mas tinhas dúvidas das pancadas na minha cabeça?
Hey! Alteraste prá i muita coisa pá!
Isto assim não vale, para além de tornar o meu primeiro comentário completamente obsoleto.
-.-'
Só prova que tenho em consideração a tua opinião.
A verdade é que continuarei a mudá-lo, desde que continue a lê-lo.
johnny, desta vez concordo contigo... uma dose de dor e uma dose de prazer, mas levadas ao extremo!
Bom fim de semana
Pronúncia, acho que hoje vou experimentar... para atenuar os efeitos da discussão anterior :)
johnny, vais experimentar o quê?!
Espero que o bom fim de semana... ;D
Sim, Pronúncia, é isso, até porque podem aparecer por aqui algumas mentes mais impressionáveis que me tenham como modelo a seguir.
Adorei mesmo... =)
Claro que sentia, todos nós somos feitos de sentidos*
beijinho*
Obrigado, Por entre o luar.
GAS!!!!!!!!!!
Sim, Ginger, eu compreendo que tenhas de ir para um manicómio e não te censuro por isso. Far-te-á bem.
Belo texto.
óptima participação.
Como disseste os problemas mais dificeis de ultrapassar são mesmo aqueles que nos consomem por dentro.. em silêncio...
Obrigado pela visita e pelo comentário, Dafne.
a mim fez-me lembrar o "get your gun" do Marilyn Manson, mas apenas por um ou dois versos precisos, que o sentido não é o mesmo (na altura em que a música dele ainda era decente).
geralmente bom, de leitura fácil embora não agradável (não formalmente mas pelo conteúdo, no que presumo que esteja a elogiar parecendo não o estar a fazer) com um clímax muito bom mesmo que é a saída nua para a rua. não me posso pronunciar quanto ao fim porque... it's not you, it's me.
É um silêncio gravissímo e parece que em maior número do que conhecemos. Não há dúvida que o problema que esta rapariga tem é interior. Que leva algumas pessoas a criarem dentro delas este tipo de problemas? A fragilidade com que nascem é o ambiente familiar porque conhecemos pessoas com ambientes familiares péssimos que são pessoas normais, sem qualquer tipo de doenças depressivas. Em faltando auto-estima caminha-se para uma destruição inevitável.
Excelente johnny. Parabéns
Moyle, confesso que não conhecia a canção de Marilyn Manson, mas confesso que também já é uma das minhas preferidas dele... o que quer dizer pouco, porque nunca engracei com ele e uma vez até saí a meio de um concerto dele (num festival), não porque eu quisesse - eu conseguiria suportar - mas porque a malta que estava comigo já estava mais farta dele. However, sempre gostei de uma dele, que é a Tourniquet, mas acho que é uma versão. Se houve alguma inspiração musical, essa foi (obviamente, sendo eu um orgulhoso mebro da geração de Seatle) esta
Mary, eu penso que é uma propensão biológica, desenvolvida pela educação e potenciada pela psicologia, como resultado das duas anteriores... mas nestas coisas nunca se sabe. Quanto à auto-estima... Mary, Mary, Mary, digo apenas que nestas questões de psicologia - sendo eu um crítico, mas não um descrente da disciplina - nunca concordaremos... infelizmente, porque as possibilidades seriam imensas :)
o "esta" leva a um beco sem saída:(
tinha a ideia de que o tourniquet era original mas eles têm duas versões absolutas brilhantes que são a "sweet dreams" e, sobretudo, "I put a spell on you", que é uma canção de 1956. o primeiro álbum é muito bom, o segundo parece de encher contrato com a editora e é só experiências e distorções (apesar da versão do i put a spell que recomendo) e o antichrist superstar é realmente um grande álbum. depois é treta, tirando uma ou outra coisa do mechanical animals, e a participação na OST do Spawn (very nice) e do Lost Highway (sobretudo o apples of sodom). tirando isto, o pessoal que estava contigo tinha razão, o gajo é irritante :)
Demorei a responder, porque tive de pesquisar as referências do comentário. Sendo assim, I put a pell on you é mais ou menos.
O silencio da loucura é mais penoso para os sãos.
Pela automutilação, ela se satisfazia. E a mãe se consumia.
Até mesmo os psicopatas sentem, já o foi comprovado ( e psicopata não é aquele louco que mata a torto e a direito. Ele tem dificuldade em ser empáticos, são mentirosos, manipuladores, não tem remorso...)
Resta saber se ela se encaixa no termo, já que no final...sentiu!
Excelente texto, muito marcante.
Ana Cristina Quevedo, obrigado pelo comentário. Acho que ela não seria psicopata, mas talvez tivesse características comuns.
É arripiante conhecermos casos como este que tu descreveste no teu texto.
O acto de automutilação representa relamente uma forma de aliviar a tensão e curiosamente nunca uma tentativa de suícídio.
"Fazia-lhe falta um sentido para tudo, fazia-lhe falta sentir"
No teu texto sente-se que a personagem enfrenta uma tensão e um conflito inter-pessoal que a levou à automutilação. É frequente numa faxa etária muito jovem, normalmente adolescentes e a grande maioria raparigas.
Gostei muito do texto e do tema que normalmente é mais um na nossa sociedade "silência" O facto de requerer tratamento psiquiátrico poderá ser uma das causas deste silêncio.
bjs
A tua análise vai de encontro àquilo que eu queria transmitir, o que é bom :) Obrigado.
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