25/05/2009

Lisboa

O encanto de Lisboa é a sua grande falha. Lisboa é a luz do sol nas fachadas brancas das casas do bairro alto e de Alfama, Lisboa é o Castelo e a Graça, com os eléctricos a descerem as ruas serpenteantes, olhando de soslaio o Panteão e a Sé, ouvindo uma viola algures. Lisboa é o cheiro a aldeia de uma cidade que teima em agarrar-se ao seu passado provinciano sem se esquecer da modernidade das gentes que a populam no intervalo de uma bica no chiado... e Lisboa é o rio. Mas Lisboa tem medo, um medo fundado no passado, na suspeita de, à partida de cada barco, regressarem vários a reclamar aquilo de que fomos à procura há quinhentos anos a bordo de naus e caravelas ou o medo daquele terramoto (sem dúvida o terramoto), que abanou a memória da cidade até ao presente, impregnando-o de imagens de maremotos e valas cheias de corpos a arder num fim de tarde de muitos gritos e dor, afastando assim a cidade e as suas pessoas do rio, como amantes desavindos. Lisboa olha para o rio de longe e de cima, do alto e da segurança do miradouro da Senhora do Monte e do Adamastor, colocando entraves à proximidade como demonstração da sua resolução – terá sido grande o amuo! –, renunciando à harmonia de tempos idos. Lisboa, ao contrário do Porto, não abraça o rio: afasta-o secamente, virando a cara com vergonha, tristeza e apenas a reminiscência de algum amor, reclamando ao mesmo tempo a sua beleza e intangibilidade, à medida que o sol baixa, num perpétuo cor-de-laranja do entardecer, quando parece ouvir-se um choro a acompanhar um acorde final na viola.

(João Freire)



Lisboa que amanhece - Sérgio Godinho


Um Homem na Cidade - Carlos do Carmo

4 comentários:

Anónimo disse...

Bonita síntese sobre Lisboa. Sempre disse que tens uma veia de escritor, é pena não apostares mais nela. Quando se tem o dom ou talento da descrição física é meio caminho para atingir o sucesso. Aposta, vais ver que não custa nada.
Quanto a Lisboa, sou sincero, gosto de lá passar algumas horas, mas depois também quero fugir do rio. Há algo nessa cidade que ainda não compreendi, mas que não me atrái. Deve ser do civismo dos seus condutores, talvez...
Ou então o facto de conhecer outras capitais europeias...
É a minha subjectividade.

Johnny disse...

eu gosto de Lisboa, gosto muito até. aprendi a gostar, pois antes acho que não gostava - talvez fosse desconhecimento -, mas fui conhecendo e gostando cada vez mais. acho que se conhecermos bem nos apaixonamos. para mais, ainda afirmo que gosto de conduzir em Lisboa no frenético ritmo citadino.

Moyle disse...

Lisboa tem uma luz extraordinário e tens razão, só teria a ganhar se se entregasse nos braços do Tejo... várias cidades estão a recuperar essa faceta [de que abjectamente prescindiram] mas em Lisboa esse regresso está a ser mais lento. talvez seja esse medo de que falas, medo de uma nova traição do rio, do oceano e da terra.

Johnny disse...

E, entretanto, cada vez há mais contentores.