Bateram à porta com intervalos demorados e regulares, lamentando por antecipação a dor que (sabiam bem) iriam causar. Do outro lado a resposta demorou. Primeiro uma luz, depois o barulho pesado de alguém a descer as escadas, algumas palavras murmuradas azedamente, e, finalmente, a chave a rodar na fechadura.
- Que faz a polícia aqui – perguntou – o que é que estão aqui a fazer a esta hora?
O seu coração acelerou. Sem dúvida que teria a ver com o bebé dos seus vizinhos.
Queres ver que o mataram - Pensou instantaneamente, lembrando as vezes que esteve prestes a confrontar os progenitores com um sermão sobre a forma correcta de educar um filho - De facto, o bebé chorava tanto que o teriam sacudido até à morte.
Calmamente, o mais calmamente que conseguiu, o agente começou por pedir ao senhor que tivesse calma, que tinha havido um acidente, dizia, mas que mantivesse a calma.
Do lado de dentro, o homem não compreendia. Não seria o bebé, mas o que poderia ser? A sua mulher estava ali, a sua filha estava a dormir, não tinha mais família ali perto e se fosse um familiar distante ou um amigo nunca iriam ter com ele. Seria engano, certamente.
- Mas que acidente?
25 anos de carreira na polícia preparam para muita coisa, mas dificilmente preparam alguém para dizer a um pai que a filha morreu.
- Foi a sua filha – soluçou, olhando o homem nos olhos.
Foi nesse momento que o senhor se acalmou, esboçando até um sorriso, enquanto olhava para a sua mulher no fundo das escadas, que se cobria com um espesso roupão.
- A minha filha está a dormir – disse, entre sorrisos.
- Lamento – continuou o agente, mas não há erro possível.
Já algo chateado, mas compreensivo, o homem explicou porque é que não podia ser a sua filha, convidando os dois agentes a entrar, ao mesmo tempo que procurava a sua mulher para que lhes preparasse alguma coisa.
Já não a viu, restando um vislumbre dos seus pés, que desapareciam entre as escadas e o tecto, num passo apressado.
- Sentem-se aqui que a minha mulher já vem – disse, explicando de seguida que ele mesmo acompanhara a sua filha até ao quarto quando se encaminhava para o quarto-de-banho, antes de se deitar.
Os agentes fizeram um breve silêncio, esperando algo mais do que o olhar que partilhavam.
Entretanto um grito desesperado ecoou na casa, perfurando o olhar do senhor que estava em pé à frente dos agentes, fazendo com que deixasse cair o copo de água que segurava numa das mãos.
Teria fugido a meio da noite, para se encontrar com o seu namorado, um rapaz que morava ali perto dentro da povoação. O acidente ocorrera junto a uma discoteca, deslocada da vila uns poucos quilómetros, na encosta de uma serra. O gelo na estrada e a mistura de álcool e drogas fora mais do que suficiente para desfazer um carro novo contra duas árvores.
Chapa retorcida, papéis e milhares de pedaços de plástico e ferro, ocupavam a estrada e lá ao fundo, postos lado a lado, cinco sacos de plástico cheios de vida, juventude e beleza.
(João Freire)
8 comentários:
cheios de morte... :)
(o texto está muito bom)
e agora a merda do imeen que só deixa postar 30 segundos das músicas!
... bem este arrepia...
Tu e as mortes, aii...
BeijinhoOS*
isto: :) depois disto: cheios de morte?
Aqui d+á para ouvir tudo, se calhar tens de estar ligada (logada) ao imeen.
E se eu não soubesse que vêm pessoas que eu conheço ao blogue, assim como crianças e senhoras, ainda arrepiava mais... ou não.
A morte, como sentimento de perda, liberta sentimentos e emoções que facilmente se transpõem para textos, na verdade é facilitismo.
o :) depois da minha frase, foi apenas para não parecer demasiado imposto.
Eu também gosto de matar pessoas nos meus contos... quando não mato ninguém fica-me sempre um sentimento de algo inacabado... :p
Já fui criticada por isso... mas eu quero lá saber!
Gostei do teu blog... vou voltar. =)
*
Desde que seja só nos contos...
Então tenho de continuar a matar mais gente!
E obrigado.
é mais ou menos.
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