01/05/2009

Falta de ar

Bateram à porta com intervalos demorados e regulares, lamentando por antecipação a dor que (sabiam bem) iriam causar. Do outro lado a resposta demorou. Primeiro uma luz, depois o barulho pesado de alguém a descer as escadas, algumas palavras murmuradas azedamente, e, finalmente, a chave a rodar na fechadura.

- Que faz a polícia aqui – perguntou – o que é que estão aqui a fazer a esta hora?

O seu coração acelerou. Sem dúvida que teria a ver com o bebé dos seus vizinhos.
Queres ver que o mataram - Pensou instantaneamente, lembrando as vezes que esteve prestes a confrontar os progenitores com um sermão sobre a forma correcta de educar um filho - De facto, o bebé chorava tanto que o teriam sacudido até à morte.

Calmamente, o mais calmamente que conseguiu, o agente começou por pedir ao senhor que tivesse calma, que tinha havido um acidente, dizia, mas que mantivesse a calma.

Do lado de dentro, o homem não compreendia. Não seria o bebé, mas o que poderia ser? A sua mulher estava ali, a sua filha estava a dormir, não tinha mais família ali perto e se fosse um familiar distante ou um amigo nunca iriam ter com ele. Seria engano, certamente.

- Mas que acidente?

25 anos de carreira na polícia preparam para muita coisa, mas dificilmente preparam alguém para dizer a um pai que a filha morreu.

- Foi a sua filha – soluçou, olhando o homem nos olhos.

Foi nesse momento que o senhor se acalmou, esboçando até um sorriso, enquanto olhava para a sua mulher no fundo das escadas, que se cobria com um espesso roupão.

- A minha filha está a dormir – disse, entre sorrisos.

- Lamento – continuou o agente, mas não há erro possível.

Já algo chateado, mas compreensivo, o homem explicou porque é que não podia ser a sua filha, convidando os dois agentes a entrar, ao mesmo tempo que procurava a sua mulher para que lhes preparasse alguma coisa.

Já não a viu, restando um vislumbre dos seus pés, que desapareciam entre as escadas e o tecto, num passo apressado.

- Sentem-se aqui que a minha mulher já vem – disse, explicando de seguida que ele mesmo acompanhara a sua filha até ao quarto quando se encaminhava para o quarto-de-banho, antes de se deitar.

Os agentes fizeram um breve silêncio, esperando algo mais do que o olhar que partilhavam.

Entretanto um grito desesperado ecoou na casa, perfurando o olhar do senhor que estava em pé à frente dos agentes, fazendo com que deixasse cair o copo de água que segurava numa das mãos.

Teria fugido a meio da noite, para se encontrar com o seu namorado, um rapaz que morava ali perto dentro da povoação. O acidente ocorrera junto a uma discoteca, deslocada da vila uns poucos quilómetros, na encosta de uma serra. O gelo na estrada e a mistura de álcool e drogas fora mais do que suficiente para desfazer um carro novo contra duas árvores.

Chapa retorcida, papéis e milhares de pedaços de plástico e ferro, ocupavam a estrada e lá ao fundo, postos lado a lado, cinco sacos de plástico cheios de vida, juventude e beleza.

(João Freire)

Retrovertigo - Mr. Bungle

8 comentários:

ipsis verbis disse...

cheios de morte... :)
(o texto está muito bom)

e agora a merda do imeen que só deixa postar 30 segundos das músicas!

Por entre o luar disse...

... bem este arrepia...

Tu e as mortes, aii...

BeijinhoOS*

Johnny disse...

isto: :) depois disto: cheios de morte?

Aqui d+á para ouvir tudo, se calhar tens de estar ligada (logada) ao imeen.

Johnny disse...

E se eu não soubesse que vêm pessoas que eu conheço ao blogue, assim como crianças e senhoras, ainda arrepiava mais... ou não.

A morte, como sentimento de perda, liberta sentimentos e emoções que facilmente se transpõem para textos, na verdade é facilitismo.

ipsis verbis disse...

o :) depois da minha frase, foi apenas para não parecer demasiado imposto.

Ginger disse...

Eu também gosto de matar pessoas nos meus contos... quando não mato ninguém fica-me sempre um sentimento de algo inacabado... :p
Já fui criticada por isso... mas eu quero lá saber!

Gostei do teu blog... vou voltar. =)


*

Johnny disse...

Desde que seja só nos contos...

Então tenho de continuar a matar mais gente!

E obrigado.

Johnny disse...

é mais ou menos.