19/04/2011

Olhos que não sorriem

A princípio tocou-lhe o corpo jovem com cuidado. Havia muito tempo que as suas mãos gretadas pelo tempo e trabalho sentiam algo parecido. Talvez no tempo da guerra, um tempo em que as cabritas se dispunham a levar aqueles homens pálidos em troca de algum dinheiro.
As cabritas, como chamavam às raparigas que calcorreavam as ruas de Lourenço Marques, Niassa e Nampula, nunca sorriam, mas o seu corpo cor de mel, esse sempre disponível, intoxicaria qualquer um de prazer, fazendo-o esquecer tudo, até a guerra. À noite, no banho, só teria de lavar as partes íntimas com um frasquinho que o exército garantia a todos em remessas mensais para combater qualquer doença e não acontecer algo que o fizesse saltar do barco a caminho de Lisboa, como chegou a testemunhar.
“Sem isto não sou um homem”, ouviu ele uma vez, junto dos seus amigos no convés do “Vera Cruz”, na viagem de regresso, “O que é que eu vou fazer em Portugal?”
Olharam todos e viram um homem no cimo da amurada, num dos pisos mais altos. Dizia muitas coisas, algumas sem sentido e passado algum tempo, quando todos pensavam que não ia saltar, saltou mesmo, sem pénis nem dignidade para o mar que o engoliu rapidamente. O barco não parou.
Apesar disso, desses episódios e de muitos outros de colegas que morreram, ficaram feridos ou malucos, apesar da guerra, apesar de tudo, talvez pelas cabritas, as recordações eram maioritariamente boas. Por isso regressavam amiúde, como se também ele estivesse a regressar àquele momento de uma juventude distante em que podia ter alguém assim a retorcer-se à sua frente e ele sabia exactamente o que fazer. Não que não soubesse, nunca o ouviriam dizer isso, mas o seu corpo já não era o mesmo e ainda que soubesse o que fazer, às vezes não conseguia. Sentia-se velho e envergonhado.
Ela sorria, tocando-lhe no braço com ternura, mas também aquele sorriso lhe parecia falso. Os olhos mortiços não condiziam com os lábios abertos e afáveis, expondo a realidade das suas circunstâncias: uma Puta a foder um velho.
Ele estava de joelhos, entre as pernas abertas dela, que estava deitada de costas, com uma mão a fazer rolos no cabelo e a outra desamparada na cama, esperando-o.
Indiferente à sua prontidão, apertou-lhe a barriga, como se a examinasse, sentido a magreza da sua cintura e a elasticidade da sua pele. Os seus seios pequenos mas cheios descaiam ligeiramente para os lados e ele apertava-os também. “E então, começamos?”, disse ela, num sorriso desafiador, rodando sobre si mesma, voltando-lhe as costas enquanto se apoiava nos cotovelos e joelhos.
Tinha 64 anos, demoraria sempre algum tempo.
Só nunca pensou na sua mulher.
Depois de acabar, com um sorriso que lhe enchia a cara rosada do cansaço, disse num tom cândido que não tinha dinheiro para pagar, mas que agradecia muito aquela experiência que trouxera alguma vida a um homem acabado. “Está a gozar comigo?”, perguntou ela, já sem sorrisos, enquanto se afastava dele, levantava da cama e vestia as cuecas. “Não, querida”, respondeu ternamente, “desculpa, mas não. Sou um pobre agricultor”. A mulher, chateada, acabou de vestir-se rapidamente e saiu, fechando a porta atrás de si à chave com o homem lá dentro, regressando pouco depois, acompanhada de três mulheres e dois homens.
“Não tenho dinheiro!” justificou-se novamente, mostrando a sua carteira vazia.
“Isso é problema seu”, respondeu uma das mulheres, a mais velha, que era conhecida por ser a dona daquele café infame, “e portanto vai ficar aqui até que alguém venha pagar o que deve.”
As outras mulheres, apesar de chocadas, não disfarçaram uma gargalhada cúmplice, olhando a colega que havia sido vítima daquela partida inesperada.
O telefone começou a chamar. Do outro lado, na casa do casal, tocava. O marido não estava e ela raramente recebia chamadas.“Quem seria”, perguntou a si mesma, ao encaminhar-se, tão vagarosamente quanto a sua perna sobrecarregada pelo peso permitia, para a cozinha, onde estava o telefone.“Estou sim?”, atendeu.
Explicaram-lhe tudo. Ela limitou-se a ouvir. Com uma calma exasperante, respondeu que ia a caminho, mas que tinham de esperar um pouco porque ainda tinha de chamar um táxi. Desligou antes de chorar.
“O que é que havia de fazer?” responderia depois, com algum embaraço, perante a incredulidade de toda a vila “Era o meu marido e não o podia deixar lá.”

(João Freire)

GNR - Ao soldado desconfiado


Para o tema de Abril de 2011, subordinado ao tema da Ternura, num desafio da "Fábrica de Letras".

19 comentários:

Cirrus disse...

Grande, grande!

Eva Gonçalves disse...

:)))))))!!!! Simplesmente espectacular este teu conto! Adorei... nem tenho mais palavras neste momento :)Muito bom mesmo, e captaste uma outra ternura muito subtil... :)Parabéns e Beijinho

João Roque disse...

Se gostei dos vídeos, este conto supera-os em absoluto.
Quando se fala em ternura, quando se fala em amor, quando se fala em sexo, nunca ninguém fala nos velhos.
Aliás, neste país pouco se fala dos velhos...só quando morrem.
A tua sensibilidade e generosidade faz toda a diferença.
Obrigado.

mz disse...

Emociona a forma como trouxeste aqui esta história. As lembranças da juventude arrepiam e depois a ingenuidade da velhice é algo incomodativo e ternurento ao mesmo tempo.
Gostei muito

Por entre o luar disse...

Gostei ... =) Muito bom ^^

meldevespas disse...

tao bonito Joni... engraçado como esta coisa da tristeza pode ser a um tempo solitaria e ternurenta. Ou entao ´´e a velhice e nao so a tristeza que tem esse poder. amei

ipsis verbis disse...

Até parece que já foste velho e que voltaste para contar isto. E já não é a primeira vez... O texto está lindo!

MAR disse...

Curiosamente este texto faz-me lembrar uma conversa recente, com um senhor de idade semelhante que esteve em Lourenço Marques.Ate parecia que o estava a ouvir outra vez...
Muito bom!

Johnny disse...

Vocês, pá, são os maiores. O verdadeiro mérito destas histórias reside no facto de serem... reais! Sim, eu conheço gente a quem se passou isto da mulher ter de ir buscar o marido e conheço gente que viveu aqueles episódios na guerra. Depois, é só floreado. Apesar de chatos, sempre dá para conversar com os velhotes.

Briseis disse...

Gostei tanto, Johnny...! Porque apesar do ridículo humilhante, a mulher ultrapassa largamente aquilo que entendemos por ternura e chega a uma dedicação cega e resignada. E a beleza está toda em sabermos que pode ser (e é) tantas vezes real.
Um beijinho

Johnny disse...

Obrigado, Briseis. Beijinho também.

soninha disse...

Muito bom!Bem tecidas as palavras...abçs

Johnny disse...

Soninha, obrigadinho :)

Anónimo disse...

Friend, já vi algumas situações semelhantes na prática diária. Fica uma mescla de repulsa, pena e tristeza.
Muito boa esta tua descrição.

Johnny disse...

Catsone, são coisas do catso :)

Moyle disse...

Muito bom, mesmo.

Johnny disse...

Thanks, Moyle.

Marta disse...

Hoje tirei tempo para ler, o teu texto foi a minha terceira leitura e agora já não vou ler mais nada, para não perder o sabor deste texto. Dá para pensar na vida e nas voltas que ela dá...

Johnny disse...

olá, Maya, eu hoje não tirei o tempo para ler e ando a ficar com muita coisa acumulada no reader. Obrigadinho por manteres o sabor do texto :)