A princípio tocou-lhe o corpo jovem com cuidado. Havia muito tempo que as suas mãos gretadas pelo tempo e trabalho sentiam algo parecido. Talvez no tempo da guerra, um tempo em que as cabritas se dispunham a levar aqueles homens pálidos em troca de algum dinheiro.
As cabritas, como chamavam às raparigas que calcorreavam as ruas de Lourenço Marques, Niassa e Nampula, nunca sorriam, mas o seu corpo cor de mel, esse sempre disponível, intoxicaria qualquer um de prazer, fazendo-o esquecer tudo, até a guerra. À noite, no banho, só teria de lavar as partes íntimas com um frasquinho que o exército garantia a todos em remessas mensais para combater qualquer doença e não acontecer algo que o fizesse saltar do barco a caminho de Lisboa, como chegou a testemunhar.
“Sem isto não sou um homem”, ouviu ele uma vez, junto dos seus amigos no convés do “Vera Cruz”, na viagem de regresso, “O que é que eu vou fazer em Portugal?”
Olharam todos e viram um homem no cimo da amurada, num dos pisos mais altos. Dizia muitas coisas, algumas sem sentido e passado algum tempo, quando todos pensavam que não ia saltar, saltou mesmo, sem pénis nem dignidade para o mar que o engoliu rapidamente. O barco não parou.
Apesar disso, desses episódios e de muitos outros de colegas que morreram, ficaram feridos ou malucos, apesar da guerra, apesar de tudo, talvez pelas cabritas, as recordações eram maioritariamente boas. Por isso regressavam amiúde, como se também ele estivesse a regressar àquele momento de uma juventude distante em que podia ter alguém assim a retorcer-se à sua frente e ele sabia exactamente o que fazer. Não que não soubesse, nunca o ouviriam dizer isso, mas o seu corpo já não era o mesmo e ainda que soubesse o que fazer, às vezes não conseguia. Sentia-se velho e envergonhado.
Ela sorria, tocando-lhe no braço com ternura, mas também aquele sorriso lhe parecia falso. Os olhos mortiços não condiziam com os lábios abertos e afáveis, expondo a realidade das suas circunstâncias: uma Puta a foder um velho.
Ele estava de joelhos, entre as pernas abertas dela, que estava deitada de costas, com uma mão a fazer rolos no cabelo e a outra desamparada na cama, esperando-o.
Indiferente à sua prontidão, apertou-lhe a barriga, como se a examinasse, sentido a magreza da sua cintura e a elasticidade da sua pele. Os seus seios pequenos mas cheios descaiam ligeiramente para os lados e ele apertava-os também. “E então, começamos?”, disse ela, num sorriso desafiador, rodando sobre si mesma, voltando-lhe as costas enquanto se apoiava nos cotovelos e joelhos.
Tinha 64 anos, demoraria sempre algum tempo.
Só nunca pensou na sua mulher.
Depois de acabar, com um sorriso que lhe enchia a cara rosada do cansaço, disse num tom cândido que não tinha dinheiro para pagar, mas que agradecia muito aquela experiência que trouxera alguma vida a um homem acabado. “Está a gozar comigo?”, perguntou ela, já sem sorrisos, enquanto se afastava dele, levantava da cama e vestia as cuecas. “Não, querida”, respondeu ternamente, “desculpa, mas não. Sou um pobre agricultor”. A mulher, chateada, acabou de vestir-se rapidamente e saiu, fechando a porta atrás de si à chave com o homem lá dentro, regressando pouco depois, acompanhada de três mulheres e dois homens.
“Não tenho dinheiro!” justificou-se novamente, mostrando a sua carteira vazia.
“Isso é problema seu”, respondeu uma das mulheres, a mais velha, que era conhecida por ser a dona daquele café infame, “e portanto vai ficar aqui até que alguém venha pagar o que deve.”
As outras mulheres, apesar de chocadas, não disfarçaram uma gargalhada cúmplice, olhando a colega que havia sido vítima daquela partida inesperada.
O telefone começou a chamar. Do outro lado, na casa do casal, tocava. O marido não estava e ela raramente recebia chamadas.“Quem seria”, perguntou a si mesma, ao encaminhar-se, tão vagarosamente quanto a sua perna sobrecarregada pelo peso permitia, para a cozinha, onde estava o telefone.“Estou sim?”, atendeu.
Explicaram-lhe tudo. Ela limitou-se a ouvir. Com uma calma exasperante, respondeu que ia a caminho, mas que tinham de esperar um pouco porque ainda tinha de chamar um táxi. Desligou antes de chorar.
“O que é que havia de fazer?” responderia depois, com algum embaraço, perante a incredulidade de toda a vila “Era o meu marido e não o podia deixar lá.”
Estou em casa à espera que ninguém me incomode por causa do Porto ter ganho o campeonato. É normal. Uns ganham, outros perdem, uns vangloriam-se, outros chateiam-se, acusando os outros de não serem tão nobres quando eles são na hora da vitória. Mas não são. São todos iguais, somos todos a mesma merda de que são feitos os sonhos e os fracassos. É claro que todos achamos que somos diferentes, que somos melhores, mas tivesse eu ganho o campeonato e estaria neste momento a chatear todos os portistas que conheço, mesmo aqueles com quem não falo regularmente. Esse é o papel do adepto.
O desporto é assim: um lado ganha, outro lado perde, uns ficam contentes e os outros tristes. A nobreza na hora da derrota só existe para quem não compreende a essência do desporto. Respeito os adversários, acho que devem existir e daí faço o raciocínio que não os devo matar. Apenas isso. É tudo uma questão do que é aceitável e do que não é. Parece básico mas não será bem assim, como se viu hoje nos arredores do estádio da Luz. A verdade é que muita gente não compreende um aspecto importantíssimo do desporto: Sem adversários não há competição e sem competição não há desporto. Pode haver qualquer coisa... no circo não há adversários, por exemplo, no teatro também não, mas, havendo outras coisas, não há desporto seguramente. Muita gente tenta racionalizar a discussão clubística como se fosse possível convencer o nosso interlocutor que a nossa equipa é melhor do que a deles e aí é que está outro erro crasso. Claro que muito do que é referido como "paixão clubística" é sinónimo de ignorância, ainda assim, importa avisar que não existe nenhum caso documentado de alguém que, após ter ouvido os argumentos do seu interlocutor, tenha dito: "Realmente, estes argumentos técnicos e históricos que apresentas nesta discussão fazem sentido. O meu clube é inferior ao teu e amanhã de manhã vou rasgar o meu cartão de sócio e mudar de clube". Ninguém. Nenhuma racionalização é mais forte do que aquela assente na irracionalidade e a escolha de clube é a epítome da irracionalidade e não adianta tentarem subverter esta certeza natural, porque tal tentativa apenas conduz ao agravamento dos métodos argumentativos, isto é, à violência. A violência é apenas uma forma exagerada dessa racionalização inconsequente. Daí não fazerem sentido os debates semanais na televisão e rádio de interlocutores dos principais clubes de futebol, pois estes só alimentam e amplificam as discussões anteriormente infrutíferas e inofensivas de café, transformando-as num baluarte da razão aparente, acendendo frustrações e ódios recalcados que extravasam nos adeptos com consequências gravosas. Perguntem a algum membro das claques dos principais clubes de futebol o porquê de fazerem o que fazem e todos lhes darão alguns raciocínios (muitos fornecidos por esses comentadores de regime), uns mais lógicos, outros menos, claro, mas nenhuns suficientemente válidos para justificar as suas acções mais visíveis nesses estádios de futebol que se vão enchendo de medo e sangue. Sendo assim, importa dizer aos eternos idiotas que agridem, atiram objectos, insultam e que promovem a violência em geral que o desporto é o que acontece lá dentro do campo, com casos, injustiças, suor, lágrimas, risos, derrotas e vitórias características do próprio jogo e que nada do que acontece lá dentro pode ou deve ser alterado por aquilo que alguém faz cá fora.
Deixem o deporto, com a glória e o insucesso, para os desportistas e a alegria a a tristeza, com bocas, piadas, até insultos como os que titulam este texto, mas sem violência, para os adeptos.
(João Freire)
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