“Como seria se atirasse este bife ao vestido da Rita – pensou –, como reagiria ela e o seu namorado informático ao ver este molho escuro espalhado naquele vestido branco?”
Nada do que se passava àquela mesa se assemelhava ao Natal. O natal não é, ou, como ela conjurava na sua mente, “não pode ser um grupo de recém-amigos, emparelhados em casais à volta de uma mesa, para comemorar uma data que não lhes diz nada!”
Lembrava-se de um outro natal, lembrava-se dos gritos irritantes de crianças andrajosas num jantar em que ninguém está calado, do choro gutural de um bebé privado de um brinquedo, de berros disseminados dos pais a mandar calar os filhos e dos filhos assustados, que num salto apontam culpados que não eles, lembrava-se da comida e bebida, de gargalhadas sonoras, vidro partido de algo caro ou barato entornado de uma mesa, talvez a mesa das crianças ou não, papel de embrulho rasgado pelo chão, quedas e brinquedos partidos.
Esse é que seria o verdadeiro Natal.
Olhava em redor e via caras desconhecidas, pintadas dentro dos contornos perfeitamente delineados a negro, que se contrapunham ao brilho da fileira de dentes branca que usavam como uma figura de estilo no requintado discurso; caras resplandecentes em cima de fatos alinhavados com mestria, pretos e cinzentos, ora camisa branca, ora vestido preto, gola engomada, salto alto, bainha, botões, relógio, decote, cinto, brinco e colar, cabelo, cabelo, gel e cabelo… mais cabelo, equilíbrio e gala. E lembrava-se ao mesmo tempo das suas próprias correrias ruborizadas e ofegantes de menina, do suor na testa que molhava o cabelo, da prima desdentada que se ria em desafio, apresentando ao mundo a ridícula soma de três dentes com a idade de 9 anos, as camisas desfraldadas, mais cabelo suado, uma palma de um adulto na testa com medo da febre e mais correrias, tudo isto enquanto sorria levemente, mexendo com o garfo no seu prato molhado de grãos de pimenta.
“Como seria se atirasse este bife ao vestido da Rita – tornou –, como reagiria ela e o seu namorado informático?”
Sorriu com malícia.
Reminiscência após reminiscência, evocava aqueles dias de Dezembro, podia jurar que sempre iguais, com a mãe a passar ferro, o irmão bebé a brincar com algo novo e insignificante, o outro irmão na rua a desmontar uma bicicleta nova para arranjar uma mais velha que estava pendurada na parede da garagem, o pai sempre a trabalhar, uma panela de pressão no bico maior do fogão, a missa na televisão, o lume na lareira e tudo sempre assim, porque a missa não podia nunca estar na lareira, nem a panela na televisão, da mesma forma que o seu irmão não podia manter algo novo intacto por muito tempo, a natureza das coisas, portanto! E ela a pedir à mãe para ir aos tios, que ainda faltava receber presentes, sem, no entanto dizer que ainda faltava receber presentes, mentindo-lhe que tinha uma coisa para dizer à prima, e depois nem via a prima, entregando um saco com prendas que também não via, aguando os olhos até receber o seu saco (e dos seus irmãos), com as suas prendas, e sempre uma boneca, sempre coisas para pintar e uma agenda, uma agenda que morreria com uma entrada apenas:
“19 de Fevereiro:
Hoje nevou.
Eu e os meus irmãos fomos brincar para a rua.
Foi divertido."
E sempre muitos papéis e o seu barulho.
- Mas só em casa – exclamava a tia de dedo em riste.
E só em casa é que abriam. E brincavam, riscavam, sujavam, esperavam pela neve, brincavam de novo até as rodas do carro se gastarem, o cabelo da boneca se arrancar, as folhas do bloco de desenhar se riscarem, muitas vezes sem a neve aparecer.
- E a neve sem aparecer – dizia alguém.
E continuavam, ao contrário do pai que se sentava ao lume e ria…
- É meu – dizia um.
- É meu – dizia o outro.
…E ralhava.
Eventualmente seria dela – recordava, num assomo de superioridade perante os irmãos –, mas os irmãos nunca se importam com juízos de facto no que diz respeito à posse de brinquedos.
Depois os avós, “mais uma boneca, uma nota, uma pista de carros para os dois idiotas, um par de meias” e sempre as mesmas contas de somar e subtrair, para comparar com o ano anterior.
E tudo igual.
Podia jurar que era sempre igual, que recebia sempre os mesmos presentes embrulhados no mesmo papel e que os dias eram sempre iguais e a mãe a passar a ferro, os miúdos à volta dela já com os brinquedos, o pai a trabalhar e a neve… às vezes neve, outras vezes sem neve, mas sempre igual.
E enquanto se lembrava disto começou a chorar. O seu namorado (também) informático perguntou-lhe, discretamente, o que se passava.
- Opá – disse, emocionada, para que todos a ouvissem – estava aqui a lembrar-me do Natal em minha casa quando era miúda.
E todos, sem excepção se lembraram dos gritos irritantes de crianças andrajosas num jantar em que ninguém está calado, do choro gutural de um bebé privado de um brinquedo, dos berros disseminados de pais a mandar calar os filhos e dos filhos assustados, que num salto apontam culpados que não eles, lembrando-se também da comida e bebida, de gargalhadas sonoras, vidro partido de algo caro ou barato entornado de uma mesa, talvez a mesa das crianças ou não, papel de embrulho rasgado pelo chão, quedas e brinquedos partidos.
- Como seria se atirasse este bife ao vestido branco da Rita?
(João Freire)
Texto subordinado ao tema "Natal" num desafio da "Fábrica de Letras".