29/12/2009

A menina dos olhos vermelhos

E havia nela uma tristeza terna e outonal. Sorria como se lutasse para não chorar, chorava sempre que ninguém a via. Não tinha uma razão. Se pensasse muito nisso, talvez encontrasse uma, mas todo o raciocínio se perdia no primeiro sal de uma lágrima. Quando estava só, quando se deitava, quando acordava e ouvia a chuva a escorrer, quando tinha frio, quando visitava a sua aldeia de infância, quando ouvia um velho falar… sempre os olhos vermelhos, cavados fundo na cara e pesados. Lera nalgum lado que “o problema da felicidade é que toda a gente a merece” e guardava essa frase na sua cabeça como uma máxima que fazia todo o sentido em si. Todos merecemos, mas nem todos a conseguimos, pensava, o sofrimento advém da dúvida de não sabermos se vamos ser uns ou outros. Somos tristes, pobres… falta-nos sempre algo, nem que tenhamos de procurar à força esse algo para nos sentirmos infelizes, pois também não há bem que sempre dure e sorrir sempre deve ser difícil, imaginava ainda no preâmbulo de uma nova lágrima.
E toda ela era olhos vermelhos, olhos vermelhos que se aproximavam das pessoas como se procurassem algo e tivessem em si a tristeza da perda. E procurava: procurava nas outras pessoas a compreensão… enfim, que chorassem como ela. Procurava então os olhos vermelhos, pois para ela só quem chora poderá sentir.

Ornatos Violeta - Chuva



 (João Freire)

24/12/2009

Os Marretas - For what it`s worth (cover)

For what it`s worth... Boas festas.



O original, dos Buffalo Springfield, é este.

21/12/2009

Porque é que alguém escreve?

- Às vezes farto-me das palavras, de tudo isto que é esta escrita inócua... Porque é que alguém escreve?
- Porque gostam.
- Não, não é isso…
- Vem-me à memória aquele adágio que diz que “quem não sabe fazer, ensina”!
- E é isso que eu sinto. Tenho noção que sou melhor no meio das palavras do que no meio das pessoas…
- E talvez sejas fraco por isso. Somos idiotas por não ter coragem de fazer aquilo que queremos e pensamos… todos somos idiotas por causa disso.
- Ninguém faz tudo o que quer, ninguém é assim tão livre. Se fôssemos livres agarrávamos o que queríamos com as duas mãos sem nunca largar independentemente das consequências e eu não vejo muita gente a fazer isso, aliás, acho que haveria muitos crimes se assim fosse.
- Talvez...
- E não me venham dizer que não tenho coragem quando estão sentados numa secretária a receber ordens durante oito horas miseráveis.
- Tu é que disseste que a escrita é inócua.
- Eu ainda tenho noção que sou fraco e aí me redimo. Ficam as palavras, a memória da pessoa que sou no que não fiz.
- Não queria chatear-te.
- Não me chateias. Distrais-me! Mas não me chateias.
- Pareces chateado.
- A verdade é que nada disto vai de encontro àquilo que eu dizia. Isto será a finalidade da escrita.
- Então qual é a confusão?
- Eu gosto de escrever para exteriorizar sentimentos e essa treta psicológica e também gosto de escrever pelo que transmito naquilo que escrevo, mas acho que muito do gosto que tenho advém do jogo que é a escrita, pois há muitos jogos naquilo que tentamos transmitir a quem o tentamos transmitir e a forma como o transmitimos...
- Sim, a escrita é uma brincadeira da imaginação em que os blocos de construção são as palavras...
- E os sons!
- Sim.
- Gosto, por exemplo, da palavra cinismo e não sei porque é que gosto dela, nem do que gosto nela ao certo, mas gosto e uso-a muito. E é este aspecto mais mecânico e orgânico da escrita que me interessa!
- Ah.
- Por isso não me venhas dizer que é uma forma elaborada de comunicação e essas tretas, porque não é isso.
- Que estranho!
- Eu sei que a escrita, por si só, é muito importante e entendo-a, entendo até quem lê, porque se aprende muito, mas o processo de escrita, o processo de autor… isso é que eu não entendo. Aliás, estes factos apenas adensam o enigma: O que é a escrita no grande esquema das coisas que é o universo? Aquele conjunto de letras, de palavras, espaços e pontuação que criam narradores, personagens e universos imaginários? Que sentido tem tudo isto?
- Já estás a chegar ao ponto de pensares demasiado...
- E escrevemos para nós ou para os outros?
- Talvez escrevamos para nós e para os outros.
- A ideia imbecil de que podemos estar a ajudar alguém, nem que seja pela parte do simples e efémero prazer da leitura, e o gosto de sermos lidos e apreciados não podem ser a explicação.
- Procuras explicações, mas recusas as tuas próprias hipóteses...
- E o que os outros pensam terá importância?
- Já nem me ouves...
- Será que gostam, será que não gostam… e que ideia tem de nós aquele que nos lê?
- Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!! Cala-te!
- O que foi?
- E o que é que isso tudo interessa?
- Agora sim, tens razão. Já me calei!

(João Freire)



Nine Inch Nails - The Mark Has Been Made



Para o "tema livre" num desafio da "Fábrica de Letras".

18/12/2009

REI por um dia

porque hoje é um daqueles dias em que sinto mais saudades da família,
porque hoje, parece que está mais frio e cheira a neve.
porque hoje é dia 18 de dezembro e o meu mano mais novo faz anos,
aqui fica, em jeito de primeiro presente para ele, king for a day... fool for a lifetime dos faith no more:



PARABÉNS MANO! :)

"It is not a good day, if you are not looking good
This is the best party that I've ever been to
Today I asked for a god to pour some wine
in my eyes
Today I asked for someone to shake some
salt in my life
Look!
Everything's spinning
(We're on the ground)
Never cheer before you know who's winning
(Don't make a sound)
Sniff the glass and let it roll around on you tongue
Let me introduce you to someone before the party is done
Someone to look to in need or in want or in war
If you give him everything, he may give you even more
This is the best party I've been to
Don't let me die with that silly look in my eyes"

Established since 18/12/1980

No ano passado, em jeito de homenagem fraterna, foi assim. Há dois anos, apesar de também ter sido assim, foi, sobretudo, assim.

Este ano a forma de celebração escolhida é a canção vencedora do Festival RTP da canção e consequente representante de Portugal no Festival da Eurovisão de 1980. Nem é uma coisa boa nem má, é!



Depois, tal como vi aqui, parece-me uma boa ideia encaminhar todos aqueles presentes que pretendem endereçar-me (todos, não, porque estou à espera de alguns... como este) para qualquer obra de solidariedade.

Eu, como gosto desta, sugiro-a e deixo aqui a forma de poderem fazer a vossa contribuição.

Obrigado.

15/12/2009

12/12/2009

Velhos

Parece que alguém decidiu levar um grupo de idosos ao teatro. Parece que a reacção destes foi inesperada. Depois alguém fez um vídeo e, vai daí, o próprio vídeo torna-se numa sensação da internet e até numa forma original de publicitar a peça.
O vídeo é este que se segue.



Não gosto de muita coisa neste vídeo.
Não gosto, nem compreendo que haja alguém responsável pela decisão de levar um grupo de pessoas ao teatro e não tenha a capacidade de perceber ou de se informar com alguém do teatro se esse grupo vai gostar ou não da obra ou sequer se a vai compreender.
Depois, em segundo lugar, não gosto que alguém faça um plano de zoom aos dentes de um senhor como forma de menosprezar os argumentos desse mesmo senhor.
Por fim, não gosto que ainda se fale tanto do Salazar a propósito de tudo e não gosto que alguém justifique os caminhos da droga com uma peça de teatro.

Mas também há muita coisa que gosto.
Em primeiro lugar, gosto do vídeo em si porque me fez rir, mas também gosto do facto dos actores terem continuado a peça pelo meio dos apupos e vaias e – embora não aprecie que eles se riam depois da situação – compreendo que o façam.
Será que eles (os velhos) sabiam que podiam sair a meio da peça?
E, para finalizar, gosto da senhora que aparece no término do vídeo (fora do grupo - o que explica muito das reacções), que diz que gostou da peça, e gosto particularmente do senhor que a acompanha e que apenas diz boa-noite.

Eu quero ser aquele senhor. Eu quero chegar a velho e ter uma senhora que envelheça ao meu lado com uma dentição apresentável e que não me deixe ficar mal visto ao ser entrevistada pelos senhores da televisão.

(João Freire)
O vídeo foi visto aqui

10/12/2009

06/12/2009

Curtas

Uma habilidade


Uma das melhores séries de sempre, aqui.


Uma efeméride


A vida de Fernando Nobre, aqui.


Uma sugestão



Um documentário que serve o propósisto de entreter e fazer pensar, aqui.

02/12/2009

Bife em molho de pimenta num vestido branco

“Como seria se atirasse este bife ao vestido da Rita – pensou –, como reagiria ela e o seu namorado informático ao ver este molho escuro espalhado naquele vestido branco?”

Nada do que se passava àquela mesa se assemelhava ao Natal. O natal não é, ou, como ela conjurava na sua mente, “não pode ser um grupo de recém-amigos, emparelhados em casais à volta de uma mesa, para comemorar uma data que não lhes diz nada!”
Lembrava-se de um outro natal, lembrava-se dos gritos irritantes de crianças andrajosas num jantar em que ninguém está calado, do choro gutural de um bebé privado de um brinquedo, de berros disseminados dos pais a mandar calar os filhos e dos filhos assustados, que num salto apontam culpados que não eles, lembrava-se da comida e bebida, de gargalhadas sonoras, vidro partido de algo caro ou barato entornado de uma mesa, talvez a mesa das crianças ou não, papel de embrulho rasgado pelo chão, quedas e brinquedos partidos.
Esse é que seria o verdadeiro Natal.
Olhava em redor e via caras desconhecidas, pintadas dentro dos contornos perfeitamente delineados a negro, que se contrapunham ao brilho da fileira de dentes branca que usavam como uma figura de estilo no requintado discurso; caras resplandecentes em cima de fatos alinhavados com mestria, pretos e cinzentos, ora camisa branca, ora vestido preto, gola engomada, salto alto, bainha, botões, relógio, decote, cinto, brinco e colar, cabelo, cabelo, gel e cabelo… mais cabelo, equilíbrio e gala. E lembrava-se ao mesmo tempo das suas próprias correrias ruborizadas e ofegantes de menina, do suor na testa que molhava o cabelo, da prima desdentada que se ria em desafio, apresentando ao mundo a ridícula soma de três dentes com a idade de 9 anos, as camisas desfraldadas, mais cabelo suado, uma palma de um adulto na testa com medo da febre e mais correrias, tudo isto enquanto sorria levemente, mexendo com o garfo no seu prato molhado de grãos de pimenta.
“Como seria se atirasse este bife ao vestido da Rita – tornou –, como reagiria ela e o seu namorado informático?”
Sorriu com malícia.
Reminiscência após reminiscência, evocava aqueles dias de Dezembro, podia jurar que sempre iguais, com a mãe a passar ferro, o irmão bebé a brincar com algo novo e insignificante, o outro irmão na rua a desmontar uma bicicleta nova para arranjar uma mais velha que estava pendurada na parede da garagem, o pai sempre a trabalhar, uma panela de pressão no bico maior do fogão, a missa na televisão, o lume na lareira e tudo sempre assim, porque a missa não podia nunca estar na lareira, nem a panela na televisão, da mesma forma que o seu irmão não podia manter algo novo intacto por muito tempo, a natureza das coisas, portanto! E ela a pedir à mãe para ir aos tios, que ainda faltava receber presentes, sem, no entanto dizer que ainda faltava receber presentes, mentindo-lhe que tinha uma coisa para dizer à prima, e depois nem via a prima, entregando um saco com prendas que também não via, aguando os olhos até receber o seu saco (e dos seus irmãos), com as suas prendas, e sempre uma boneca, sempre coisas para pintar e uma agenda, uma agenda que morreria com uma entrada apenas:
“19 de Fevereiro:
Hoje nevou.
Eu e os meus irmãos fomos brincar para a rua.
Foi divertido."
E sempre muitos papéis e o seu barulho.
- Mas só em casa – exclamava a tia de dedo em riste.
E só em casa é que abriam. E brincavam, riscavam, sujavam, esperavam pela neve, brincavam de novo até as rodas do carro se gastarem, o cabelo da boneca se arrancar, as folhas do bloco de desenhar se riscarem, muitas vezes sem a neve aparecer.
- E a neve sem aparecer – dizia alguém.
E continuavam, ao contrário do pai que se sentava ao lume e ria…
- É meu – dizia um.
- É meu – dizia o outro.
…E ralhava.
Eventualmente seria dela – recordava, num assomo de superioridade perante os irmãos –, mas os irmãos nunca se importam com juízos de facto no que diz respeito à posse de brinquedos.
Depois os avós, “mais uma boneca, uma nota, uma pista de carros para os dois idiotas, um par de meias” e sempre as mesmas contas de somar e subtrair, para comparar com o ano anterior.
E tudo igual.
Podia jurar que era sempre igual, que recebia sempre os mesmos presentes embrulhados no mesmo papel e que os dias eram sempre iguais e a mãe a passar a ferro, os miúdos à volta dela já com os brinquedos, o pai a trabalhar e a neve… às vezes neve, outras vezes sem neve, mas sempre igual.
E enquanto se lembrava disto começou a chorar. O seu namorado (também) informático perguntou-lhe, discretamente, o que se passava.
- Opá – disse, emocionada, para que todos a ouvissem – estava aqui a lembrar-me do Natal em minha casa quando era miúda.
E todos, sem excepção se lembraram dos gritos irritantes de crianças andrajosas num jantar em que ninguém está calado, do choro gutural de um bebé privado de um brinquedo, dos berros disseminados de pais a mandar calar os filhos e dos filhos assustados, que num salto apontam culpados que não eles, lembrando-se também da comida e bebida, de gargalhadas sonoras, vidro partido de algo caro ou barato entornado de uma mesa, talvez a mesa das crianças ou não, papel de embrulho rasgado pelo chão, quedas e brinquedos partidos.

- Como seria se atirasse este bife ao vestido branco da Rita?

(João Freire)

Texto subordinado ao tema "Natal" num desafio da "Fábrica de Letras".