O dia da libertação começou como tantos outros. Era Março e o calor sacudia as almas até à exaustão. O meu turno começara há duas horas e fazíamos a nossa primeira pausa do dia para uma ligeira refeição. Claro que ninguém ligava ao rádio, era apenas um ruído suportável que acompanhava o dia dos trabalhadores, e somente quando um dos sindicalistas começou a esbracejar é que percebemos que alguma coisa se passava.
- A guerra começou - exclamou, anunciando o pior em três simples palavras.
A confusão instalou-se. Alguns, aqueles que não tinham pertences na cidade nem familiares, conseguiram resistir à tentação da histeria, mas outros, como eu, circundavam a refinaria, procurando os chefes de turno ou alguém que lhes permitisse uma hora ou duas de folga. Consegui, mas depressa me avisaram do erro que cometia e de como era melhor ficar ali à espera não sei bem do quê. Diziam para lhes telefonar, para encaminhar os meus para o aeroporto ou para a refinaria, diziam para não sair, que era perigoso percorrer a estrada de volta à cidade e diziam-me que os pretos estavam a matar todos os brancos.
(“Todos” sempre me pareceu demasiado)
E lá fui, carregado apenas de amor pela minha família e de medo pela forma como me matariam. “Seria com uma catana”, pensava, ”Seria com um pau rombo?”
Não voltaria.
Telefonei antes, dizendo à minha mulher que pegasse nas crianças e fosse com os nossos vizinhos para o aeroporto comprar passagens para Lisboa, mas não sabia ao certo se ela obedeceria, derivado a que também ela sentia o peso de deixar a nossa casa, as nossas coisas e o nosso país.
Já no caminho, uns minutos depois de abandonar a segurança da refinaria, um homem maciço mandou-me parar e lembro-me agora de pensar se o atropelava ou não e se tentaria superar a barreira que atrapalhava a passagem ou não.
- Quem é você e o que faz aqui?
Pensei que estava morto, que não tinha sítio para fugir e que tinha sido fraco na hora da morte porque nem sequer tentava fugir ou reagir.
(Que cobarde és, Jaime. Não vais voltar a ver a tua mulher, Jaime, e os teus filhos, Jaime, não vais voltar a ver Setúbal, Jaime.)
Mas ainda não seria ali.
- Temos ordens do general Manhomanha Santos para deixar passar os senhores da Petrogal, mas há comandos espalhados por aí que não sabem disso. Está avisado. Prossiga.
E eu fiquei mais calmo. Deixaram-me e segui até à cidade.
Na cidade nada, apenas ruído de algo que não identificava ao longe.
(Como quando estava fora do Estádio do Bonfim e se ouvia aquele burburinho no interior após uma jogada mais incendiária)
Passei a avenida principal, a praça e o mesmo silêncio. Já no bairro onde morava, com vista para o porto, os portões abertos, lixo espalhado e o mesmo silêncio. Entrei na casa e nada, apenas gavetas abertas, roupa revoltada pela casa e coisas a bater. "Talvez os vizinhos", pensei. Nada.
Deduzi que já tivessem partido e fiquei mais aliviado.
Eu também iria para o aeroporto.
(A empresa lá ficou. Depois ainda tentei telefonar mas já não consegui)
Antes de chegar ao aeroporto, mesmo por estradas travessas, a imagem de Angola, a imagem da libertação de um povo há 500 anos submetido ao poder dos brancos: A terra vermelha, as caras negras, os dentes brancos, o calor, a humidade estavam lá, mas estava principalmente a imagem de uns quantos a gritar “UPA, UPA, UPA” e “Angola vai agradecer” enquanto perseguiam um senhor (talvez o senhor Roberto da mercearia, que tinha uma fazenda, e a sua família) e agitavam as catanas.
Parei o carro.
Claro que não devia ter parado, devia ter continuado mais um ou dois minutos até ao aeroporto. Se tivesse continuado nunca teria a certeza que era o senhor Roberto, que era a sua família e que eram catanas aqueles objectos que os pretos tinham na mão. Lá estava a terra vermelha, as caras negras, os dentes brancos, o calor, a humidade, mas também a raiva, os olhos amarelos, e um menino caído no chão a chorar.
Não devia ter mais de três anos aquele menino que eu já entretera muitas vezes na mercearia, e era ele
(foi ele)
que no dia 15 de Março de 1961, o dia da “Acção”, como lhe chamaram, estava a ser agarrado pelas duas pernas e sacudido com toda a força de um soldado contra o capot de um carro.
O Corpo vivo da criança bateu no carro e morreu instantaneamente, os seus berros deixaram lugar ao silêncio e já só se ouvia o “UPA! UPA” e o choro descontrolado da mãe.
Depois, com uma catana, separaram a cabeça do senhor Roberto do resto do seu corpo e por fim, perante uma mulher destruída por dentro, e ajoelhada no meio de uma rua de Angola, um dos soldados de libertação apontou uma pistola à parte de trás da sua cabeça e disparou. O seu corpo caiu de imediato, não para a frente, mas para o lado.
Guerra é guerra, não tem a ver com cor, não tem a ver com política, não tem a ver com nada.
Para mim a guerra é a memória que aquela mulher teve no último minuto da sua vida.
(João Freire)
Texto subordinado ao tema "Preto & Branco" num desafio da "Fábrica de Letras" .
Publicado anteriormente aqui
30 comentários:
Está muito giro, o texto, está sim senhor.
... mas não sabia ao certo se ela obedeceria, derivado a que também ela sentia o peso de deixar a nossa casa...
Mas não gosto da palavra "derivado" aí. =\
Não me soa bem.
Mas tá catita... tá sim senhora.
Obrigado, Ginger.
A palavra derivado resulta (deriva ;) aqui neste texto pelo simples facto de eu pensar (porque já não me lembro se um dos senhores que contou e conta... e contará estas histórias utilizou mesmo esta palavra) que será uma palavra perfeitamente plausível no discurso de um senhor de sessenta e poucos anos.
Para além disso, é uma palavra habitual nos escritos do António Lobo Antunes... mas isso não justifica nada! A razão é apenas e só uma, a primeira que expliquei.
Lá plausível, é... mas lá que eu não gosto... não gosto. =D
Lobo quem?... hum?
Johnny, arrepiante este testemunho.
Muito bem escrito. Ainda estou com a imagem da criança na cabeça... :(
Ginger, Lobo Antunes.
E eu até mudava... por ti, mas não mudo.
Catsone, e outras imagens igualmente horríveis haveria de um período turbulento! Obrigado pela visita e pelo comentário.
(glup)
....
xiça que isto está muito duro! caneco, fiquei aqui com um nó na garganta...calculo que tenhas os dados sufucientes para pintares um retrato tão vivo dos acontecimentos.Muito bem escrito sim senhor....a não ser... ali o derivado hummmm
Just kiding Jóni, just kiding, please no hard feelings
Agora a sério, gostei muito. Acho que tu escreves muito bem rapaz.
Beijo
Olha, querida Meldevespas, em primeiro lugar obrigado, depois, em segundo lugar... se vocês fossem mais o derivado para o...
:)
A parte do bebé lembro-me que foi contada como sendo real. Mas há mais histórias macabras assim. Qualquer pessoa que tenha estado lá nessa altura conhece histórias do mesmo calibre ou piores.
Tudo o resto que ali está escrito fica no meio-caminho entre o que contaram e a imaginação de quem contou e de quem escreveu.
Olá Johnny
Que belo texto, e verídico do princípio ao fim. Em relação à situação específica da Petrogal, não sei, mas os relatos do que se passou no norte de Angola nesse dia 15 de Março de 1961 são bastantes e todos coincidentes no mesmo tipo de episódios e nos pormenores macabros. Não devemos esquecer esta parte da nossa História, como não esquecemos outras. Infelizmente, é uma época mais preta do que branca, ao contrário da minha fábula dos gatitos.
Quanto ao "derivado", francamente também não utilizaria aí, mas qualquer pessoa oriunda do distrito de Setúbal usaria com certeza; garanto eu, que vivo e dou aulas há anos nesse distrito.
Obrigado, Teresa.
Ainda por cima, alguém que defende - ainda que não da forma que eu pretendia - o "derivado".
Ginger e Mel, "mas qualquer pessoa oriunda do distrito de Setúbal usaria com certeza; garanto eu."
Tomem lá!!!!
:)
Gostei do teu texto. E para além disso... estou contigo, se o "meste" usa essa palavra... toca a usar, right???
Está fantástico o texto... e quanto ao pôr ou tirar palavras, nada dissoo =)
Deve ser dos melhores textos na Fábrica, se não o melhor =)
(Não fiques ainda mais convencidooo)
BeijinhoO
Eva, 'mai`nada'. Obrigado.
Por entre o luar... já não há nada a fazer! Lamento :) e muito obrigado.
Só vim aqui dizer, que eu, a Mel e derivado estamos no ..., e que está tudo bem aqui. Faz sol e assim... muito agradável mesmo, tendo em conta a altura do ano, e esperamos que esteja tudo bem contigo também.
Olha, o derivado está a acenar-te. Ganda maluco.
Um abraço e um bem haja!
tem o medo, angst e desorientação, sorte ingénua, a crueldade está lá, a estupidez também, tem "mancha humana" (para usurpar um bocadinho) all over e o pormenor do "derivado a" dá-lhe a autenticidade de um relato.
muito bom.
Todas as memórias de guerra são arrepiantes. Esta viagem a Angola lembra-nos que esta guerra existiu, que faz parte da nossa história e que foi uma guerra cruel e selvagem. (sem entrar em política e racismo)
As catanas arrepiam-me...
Muito bem escrito.
Gostei!
bjs
Quantas histórias ouvi idênticas, não as vivi, em Moçambique as coisas correram bem melhor. Mas tive, uma vez, que passar por uma multidão, munida de pedras, agachada dentro de um carro. Não tive medo, era demasiado criança para entender o que se estava a passar. Agachei-me porque me mandaram agachar. Em Angola a realidade foi bem diferente e as catanas aniquilaram os brancos que, não conseguiram fugir a tempo. Apreendeste muito bem as histórias vividas por esse senhor de sessenta e tal anos. Quem lê convence-se que o narrador viveu os acontecimentos.
Johnny os meus parabéns e obrigada por, embora com uma história arrepiante, fazeres-me lembrar aquele país implantado no oceano Índico, que nunca esquecerei.
Derivado de ter vindo aqui outra vez, só pra ver se n te aborrecias com o comentário, ganhei uma viagem de borla pró..... e não se está mal não senhor, deve ser derivado do dia estar de sol e assim.
Beijos Grandes
Ginger, Mel e Derivado, fico à espera do postal. Ainda bem que estão a divertir-se, vi logo que iam gostar, o... tem tudo a ver convosco!
Moyle, Obrigado, principalmente por teres dito que " o pormenor do "derivado a" dá-lhe a autenticidade de um relato." Era mesmo isso que eu pretendia.
MZ, obrigado. As catanas deviam arrepiar toda a gente.
Brown Eyes, mais do que o país, merecem destaque as pessoas, não só as que fizeram aquilo, que acharam que os seus actos tinham justificação, como as outras que viveram a guerra em todos os seus lados (e não eram apenas dois) sofrendo imenso. O país... infelizmente, não conheço. Talvez um dia.
"porque ela também sentia o peso de deixar a nossa casa"... :) a conjunção subordinativa causal também é apropriado. :)
Parabéns pelo texto...
Uma abordagem crua e dura ao preto e branco.
Gostei "derivado de" ser tão verdadeira :)
nightingale, eu continuo com o meu grupinho do "derivado" (penso mesmo que somos a malta fize), mas cada um com o seu :) obrigado.
Obrigado, Ceres. Apesar de ser "crua e dura", o objectivo era mesmo ser verdadeira.
johnny, gostei deste texto, é um texto cru, e que por isso mesmo retrata bem a crueldade da guerra e em que as vítimas têm família, têm rosto, têm nome e têm profissão... e até são crianças.
Obrigado, Pronúncia. Poder-se-ia dizer que tem a "Pronúncia" adequada :)
Nada que "obrigadar" é a sério (senão não escrevia)...
Gostei do trocadilho ;)
Eu sei, eu li o último post "de ataque" da pronúncia do norte, mas também li um dos outros mais antigos que dizia qualquer coisa sobre os bons dias. Onde cabe um "bom-dia" também cabe um "obrigado" e um "não tem de quê" e um "é um prazer". E todos se aplicam aqui :)
Nos dias que correm é bom saber que há mais alguém a pensar isso... já somos tão poucos!
uau!!!
foi longe!!
Seremos poucos, pronúncia, mas bons, claro.
Paradoxo, usando o seu nome como forma de resposta, ou seja, paradoxal e contraditória, não sei se foi demasiado longe ou se nem sequer tocou a superfície... foi aonde foi :) Obrigado pela visita.
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