24/11/2009

É a história de um homem que por ciúme mata o seu próprio irmão. É a história de um homem que por ter matado o seu próprio irmão é marcado, por deus, com um sinal na testa. É a história de um homem, que por ter matado o seu próprio irmão e ter sido marcado na testa por deus, vagueia pelo mundo à procura de uma explicação. É a história de um homem que, por ter matado o seu próprio irmão e ter sido marcado na testa por deus, vagueando pelo mundo à procura de uma explicação, se encontra envolvido em muitas outras histórias de muitos outros homens em diferentes tempos e lugares. É a história de um outro viajante magnífico. (um viajante no tempo)
É a história de Caim contada por Saramago. Uma história cheia de peripécias, humor e muitos factos bíblicos.




"O caminho subia e subia, e o jumento, que, bem vistas as coisas, de burro não tinha nada, avançava aos ziguezagues, ora para cá, ora para lá, supõe-se que devia ter aprendido o genial truque com as mulas, que nesta matéria de ascensões alpinas a sabem toda. Uns quantos passos mais e a subida acabou. E então, ó surpresa, ó pasmo, ó estupefacção, a paisagem que caim tinha agora diante de si era completamente diferente, verde de todos os verdes alguma vez vistos, com árvores frondosas e cultivos, reflexos de água(...) Era como se existisse uma fronteira, um traço a separar dois países, Ou dois tempos, disse caim sem consciência de havê-lo dito, o mesmo que se alguém o estivesse pensando em seu lugar. Levantou a cabeça para olhar o céu e viu que as nuvens que se moviam na direcção donde viemos se detinham na vertical do chão e logo desapareciam por desconhecidas artes. Há que levar em consideração o facto de caim estar mal informado sobre questões cartográficas, poderia mesmo dizer-se que esta, de certo modo, é a sua primeira viagem ao estrangeiro, portanto é natural surpreender-se, outra terra, outra gente, outros céus e outros costumes.
(...)
Então estamos no futuro, perguntamos nós, é que temos visto por aí uns filmes que tratam do assunto, e uns livros também. Sim, essa é a fórmula comum para explicar algo como o que aqui parece ter sucedido(...)
Já as palpebras tinham começado a pesar-lhe quando uma voz juvenil, de rapaz, o fez sobressaltar, Ó pai, chamou o moço, e logo uma outra voz, de adulto de certa idade, perguntou, Que queres tu, isaac, Levamos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a vítima para o sacrifício, e o pai respondeu, O senhor há-de prover (...) Há uns três dias, não mais tarde, tinha ele dito a abraão, pai do rapazito que carrega às costas o molho de lenha, Leva contigo o teu único filho, isaac, a quem tanto queres, vai à região do monte mória e oferece-o em sacrifício a mim sobre um dos montes que eu te indicar. O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim.
(...)
Depois atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço (...) Sou caim, sou o anjo que salvou a vida a isaac. Não, não era certo, caim não é nenhum anjo, anjo é este que acabou de pousar com um grande ruído de asas e que começou a declamar como um actor que tivesse ouvido finalmente a sua deixa, Não levantes a tua mão contra o menino, não lhe faças nenhum mal, pois já vejo que és obediente ao senhor (...) Chegas tarde, disse caim, se isaac não está morto foi porque eu o impedi. O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado foram contínuas mudanças de rumo que me desorientavam, na verdade vi-me em papos-de-aranha para chegar aqui, ainda por cima não me tinham explicado bem qual destes montes era o lugar do sacrifício, se cá cheguei foi por um milagre do senhor, Tarde, disse caim, Vale mais tarde que nunca, respondeu o anjo com prosápia, como se tivesse acabado de enunciar uma verdade primeira, Enganas-te, nunca não é o contrário de tarde, o contrário de tarde é demasiado tarde, respondeu-lhe caim.
(...)
Outro presente, disse. Pareceu-lhe que este devia ser mais antigo que o anterior, aquele em que havia salvo a vida ao rapazito chamado isaac, e isto poderia mostrar que tanto poderia avançar como voltar atrás no tempo, e não por vontade própria, pois para falar francamente, sentia-se como alguém que mais ou menos, só mais ou menos, sabe onde está, mas não aonde se dirige(...)Lá longe, vinda mesmo a propósito, na beirinha do horizonte, distinguia-se uma torre altíssima (...)
À medida que se aproximava, o rumor das vozes, primeiro ténue, ia crescendo e crescendo até se transformar em perfeita algazarra. Parecem malucos, doidos varridos, pensou caim. Sim, estavam doidos de desesperação porque falavam e não conseguiam entender-se (...) Falavam línguas diferentes (...)A sorte foi ter dado logo com um homem que falava hebraico, língua que lhe tinha calhado em sorte no meio da confusão criada e que caim já ia conhecendo, com gente a expressar-se, sem dicionários nem intérpretes, em inglês, em alemão, em francês, em espanhol, em italiano, quem o imaginaria, em português. Que desacordo foi esse, perguntou caim (...)
Muitos anos depois se dirá que caiu ali um meteorito, um corpo celeste, dos muitos que vagueiam pelo espaço, mas não é verdade, foi a torre de babel, que o orgulho do senhor não consentiu que terminássemos. A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele."


in Caim de José Saramago

39 comentários:

Por entre o luar disse...

Primeiro o "O Deus das pequenas coisas", depois este logo logo =)

A ironia e o bom Humos predominam...*

BeijinhoO

Star disse...

Li o livro num dia... Não consegui parar... Só fiz uma breve pausa para jantar, isto porque o comecei a ler depois de almoço...
Adorei o livro =)

Óptima escolha ;-)

Moyle disse...

foi tudo um mal-entendido. eu só disse que o borreguinho assado caía mesmo bem. só não aceitei o trigo porque andava a cortar nos amidos.
não era preciso tanta confusão por causa disso.

ass: dEUs

ipsis verbis disse...

Por entre o luar:

Os achaques do narrador, dirigidos a nós, leitores, são extremamente engraçados.

Star:

Também não consegui parar. E a culpa deve-se à escrita fluída, às estórias que se interligam e aos personagens sarcásticos, irónicos e sempre eloquentes.

Moyle:

e não podias ter dito logo isso? era preciso ter feito tanta viagem, corrido este mundo e o outro. Conhecido pessoas estranhas com mais de 900 anos a terem filhos - e isto é deveras anormal - para depois, chegar à mesma conclusão: não percebo nada de deuses!

ass: caim, o gajo com a tua marca na testa

Moyle disse...

Caim:

como deves imaginar - ou pelo deverias porque fui eu que, além de ti, fiz tudo e mais algumas coisas que são surpresa e por isso não as revelo agora - sou uma pessoa extremamente ocupada, pelo que não posso, nem tenho pachorra para tal, andar a enviar memorandos a todo e qualquer nabo com pretensões a intelectual. já agora, por causa disso dos 900 anos, quando EU quiser, até com vento Norte há-de chover.

ass: dEUs

ipsis verbis disse...

dEUs:

Lá estás tu armado em enigmático. contigo nunca poderá haver uma conversa séria de homem para homem porque te escondes sempre nessa tua carapaça de todo-poderoso. Irrita-me isso em ti, pá!

ipsis verbis disse...

ass: caim, claro.

Moyle disse...

Caim,

há que comer e calar, meu lindo. na altura não sabias, mas tantos mil anos depois já ia sendo tempo não? comigo não há lugar a disputas, até porque já sei o que vais dizer pelo que se torna um exercício estúpido da minha parte, precisamente.

ass: dEUs

ipsis verbis disse...

dEUs:

ahahaha... "6 finest belgian chocolate sea shells" aposto que não esperavas isto!

Moyle disse...

Caim:

tem atenção que quando tiveres que comprar túnicas 3 números acima nas ancas... the joke's on you.
AHAHAHAHAHAH.

Ass: dEUs

ipsis verbis disse...

dEUs:

AHAHAHAH, damn you!

Moyle disse...

Caim,

pensa bem nisto: a expressão é «God damn you», certo? Achas mesmo que you damn you faz algum sentido? é por isso que EU digo aquilo que digo sobre explicar-me... estás a ver? põe a mãozinha na consciência, vá lá, e vê se eu não tenho razão. tenho, não tenho? eu sei que sim!

Ass: dEUs

ipsis verbis disse...

dEUs,

Que escrevas direito por linhas tortas, já eu sei desde pequenino, agora que não uses vírgulas quando elas são precisas, é mesmo só para destabilizar. chiça!

ass: o gajo que pode voltar a matar

Moyle disse...

Caim,

se queres matar, mata o Saramago. a confusão com as vírgulas é lá com ele.

ass: dEUs

Moyle disse...

Caim,

EU, na minha infinitude, não preciso de puxar por nada. eu apenas sugiro e... desenrasquem-se. queriam o livre-arbítrio e agora reclamam? não tenho irmãos mas tenho muitos filhos, quer dizer, tenho os filhos todos.

Ass: dEUs

ipsis verbis disse...

dEUs:

se não viesses com a do livre-arbítrio até te estranhava. É perfeito para daí lavares as tuas mãos.
Mas uns são mais filhos que outros, confessa lá.

Moyle disse...

Caim:

não penses que eu deixava passar o "lavar das mãos". nice touch, mas eu já sabia, lembra-te.
nesta quinta todos os animais são iguais... e eu sou o agricultor.

ass: dEUs

ipsis verbis disse...

dEUs,

Agricultor era eu, mas a tua ciumeira deu no que se viu.

Moyle disse...

Caim:

temper, temper... por essas e por outras é que os teus pais, que a tinham bem boa, deram no que deram. mas é como se diz, filho és, pai serás (é bem verdade que o rifão não fala de irmãos. deve ser graças a ti).

ass: dEUs

ipsis verbis disse...

dEUs,


"assim como fizeres (e olha que foste tu que nos fizeste a todos) assim acharás". Pois. acaba assim o teu rifão.

Moyle disse...

Caim,

mas olha cá uma coisa, eu não estou a reclamar pois não? o menino, mimado como se vê, é que não aguentou a concorrência do maninho não foi? e toca de seguir as pisadas dos papás, não foi? e o culpado sou eu? tstststs...

ass: dEUs

ipsis verbis disse...

dEUs,

Concorrência essa que se deve toda ao justo e imparcial deus que dizes ser. Pff... Não fosses tu, estaria eu e abel ainda na praia a fazer castelos de areia. E pára de trazer os meus pais à baila. É sempre a mesma história! "Se não fosse Eva a comer a maçã, blá blá blá..."
Foram os teus primeiros. É mais que natural que viessem com defeitos de fabrico. Até porque foste tu quem lhes montou as peças....

Moyle disse...

Caim:

montei as peças, mas antes idealizei-as, desenhei-as e fabriquei-as. não vamos esquecer os "pormenores". além disso, o que lhes dei eu, a seu próprio pedido? liberdade. e olha o que eles, e tu, fizeram com ela! dá-me uma boa razão para eu não me "arrepender" de vos ter feito, ou de vos ter dado liberdade!

ass: dEUs

ipsis verbis disse...

dEUs:

a parte do "crescei e multiplicai-vos" é uma boa razão para nos teres feito. Igualdade de direitos também é uma vitória para a liberdade.

Moyle disse...

Caim,

"crescei e multiplicai-vos" foi perto, mas ainda assim resposta errada. "fazei-vos" é que seria a resposta correcta. só se fala e pensa nisso mas agradecer... é o agradeces. 'tá certo! o resto são filosofias. e de onde nasce a filosofia? da falta de "fazei-vos".

ass: dEUs

ipsis verbis disse...

dEUs:

é verdade que somos mais pensadores que fazedores. é como aquele sketch dos monty python. todos sentados à mesa a dizer que se deve fazer isto e aquilo, e que é preciso actuar. e todos concordam, mas ninguém levanta o rabo da cadeira para fazer seja o que for. e olha, que giro, é numa paródia ao teu filho que morreu na cruz.

Moyle disse...

Caim,

ao menos não foi morto por nenhum irmão e, como deves saber, mesmo essa parte do morrer é suficientemente elástica para não sermos demasiado definitivos na sua afirmação.
diverti-me muito quando fiz os Monty Python. sempre achei que tinha uma veia humorista bastante refinada e confirmou-se. se não fosse um gajo chamado Moyle (que teima em fazer o que lhe apetece apesar do que eu tinha previsto para ele), não teria rival nestas coisas do humor inteligente.

ass: dEUs

ipsis verbis disse...

dEUs,

Sim, já ouvi falar muito bem desse Moyle. E olha que eu até nem sou um gajo que se lembre de tudo. Ainda há pouco quando alguém me perguntou que marca era esta que eu tinha na testa, para além do susto: "que marca?" tive que fazer um esforço para me lembrar aonde tinha eu batido com a cabeça. E por falar em esquecimento, a ver se agora não me esqueço de assinar isto.

ipsis verbis disse...

bolas!

ass: abel

Moyle disse...

Abel,

a conversa era com o teu irmão. o sinal que tens na testa é a cicatriz da mocada que o idiota do teu irmão te enfiou. também não é preciso endEUsar esse Moyle que ele já é suficientemente pretensioso e com a mania que é esperto. é natural que te tenhas esquecido de assinar, até porque as sequelas de uma carolada como a que levaste se prolonguem. agora, mete-te na tua vida que a conversa não era contigo.

ass: dEUs

[AHAHAHAHAHAHAHAH]

ipsis verbis disse...

dEUs,

Não vou endeusar ninguém. vou apenas usar o prefixo para me lembrar de acabar, por agora, esta conversa. Há uns dias que não durmo descansado. Sempre a pensar na morte do bezerro e tal, e quando olho para as horas, são horas de me levantar para ir trabalhar. E depois é o tomar banho e o fazer a barba, e todas essas coisas que nós humanos temos que fazer para estarmos apresentáveis em menos de 15 minutos, e depois ainda há o pequeno-almoço, o passear do cão, para quem o tem, ou o dar de comer ao gato... enfim. coisas mundanas pelas quais nunca passaste e nem saberias o que fazer. por isso, meu caro dEUs, isto é apenas um até logo.

Moyle disse...

Caim,

atenção que o mEU logo pode ser um bocadinho diferente do teu, by a landslide, mas até loguinho então. há que fazer a barba de véspera, dar o gato de comer ao cão e passeares tu. vais ver que ainda te sobra tempo.

ass: dEUs

ipsis verbis disse...

dEUs:


essa sobre o poupar tempo é fantástica! tenho que rezar para te dar graças?

Moyle disse...

Caim,

não é preciso rezar, as graças são por minha conta :D

hasta mañana

ipsis verbis disse...

dEUs,

se dEUs quiser. AHAHah

Johnny disse...

Eu tenho a dizer que desconfio muito deste livro - tal como desconfio do autor, embora já tenha lido alguns livros dele e seja subscritor do blogue dele - e que, por tudo o que se passou à volta dele, do livro, me sinto tentado a não o ler.

Anónimo disse...

Não era preciso tanta animosidade por parte do autor para divulgar ou publicitar o livro. Imaginem isto numa sociedade muçulmana!? Tipo "Versos Satânicos". Cai à primeira, mas à segunda estou quieto.

ipsis verbis disse...

johnny e cccp:

é claro que ouvi dizer, apanha-se sempre qualquer coisa pelo "ar", mesmo que não se saiba realmente o que aconteceu. como é o meu caso. ouvi então dizer que houve alguma polémica aquando do lançamento do livro. mas não vi ou ouvi realmente o que se passou, e sinceramente nem quero saber, talvez tenha sido por não saber, que tenha lido o livro. talvez não... o que é certo é que, (e isto é o que eu penso) independentemente do homem que Saramago é, o escritor continua a interessar-me.

Brown Eyes disse...

O que interessa analisar aqui é a facilidade com que Saramago nos põe a pensar sobre questões tabus. Dentro da religião há verdades que têm sido ao longo dos séculos aceites cegamente, sem nunca se pôr em questão o que as mesmas encerram. Ele só pretende levantar o pó, deixar a descoberto parte da verdade, compete-nos a nós acabar de a descobrir.