30/05/2009
Um lado cada vez menos amargo
- E não devia
Tu sabias… tinhas a certeza que falavas com ela pela última vez!
- Eu estava ao teu lado
E mal conseguias conter as lágrimas.
A sua cara, o corpo… tudo diminuto. Parecia que encolhia à nossa frente, menos os olhos, que eram grandes e fortes, secos e duros, como ela!
- Como se fosse talhada de um carvalho.
Mas quando começou a dizer, em jeito de despedida, que fôssemos sempre amigos
- Eu e tu.
Tu saíste disparada, rebentando em lágrimas.
Ao dizer-lhe a ela que sim, que eu e tu seríamos sempre amigos, dividindo o olhar entre aquela senhora pequena e a tua sombra soluçada na parede do corredor…
- E não devia.
Senti que um acordo inviolável se escrevera.
E muito do que esse acordo previa ainda se mantém.
Sinto
- E não devia.
Que tenho de te proteger, compreender e aceitar, mesmo quando mais ninguém o faz, mesmo se mais ninguém o fizesse, e se, por um lado, isso me eleva perante ti
- E, mais uma vez, não devia
Por outro, confunde tudo o que possa sentir
- Bom ou mau!
Bom ou mau.
É injusto para ti, que não pediste nada, que não sentiste
- Nem sentes
Nada!
Aposto que, sabendo, me livrarias desse compromisso.
Mas um acordo é um acordo.
- As partes intervenientes disseram o que tinham a dizer naquele momento.
E, por ser prometido, nunca deixou de ser sincero.
- Claro.
E mesmo agora…
- Mesmo agora…
O sentimento amargo começa a desvanecer
- Desculpa
Desculpa.
Que se lixe.
(João Freire)
25/05/2009
Lisboa
(João Freire)
Lisboa que amanhece - Sérgio Godinho
Um Homem na Cidade - Carlos do Carmo
22/05/2009
06/05/2009
Cat Power
A voz doce e convidativa...
Achamos piada quando ela faz músculo (e faz muitas vezes)
e achamos piada quando franze a testa e pisca os olhos.
É querida, mas nota-se uma força rebelde prestes a brotar.
Depois move-se com elegância e estilo, é também assim que se veste.
E de que outra forma poderíamos gostar dela?
É Cat Power.
Ah! E para além dessas coisas (canções ou lá como lhe chamam) que ela faz muito bem, também é um pedaço de mulher. Será que estaria aqui se o não fosse?
(Duas músicas podem ser também a base de uma auto-reflexão entre o que é lamechas e bom e a importância da beleza nas coisas de que gosto)
The greatest
03/05/2009
01/05/2009
Falta de ar
Bateram à porta com intervalos demorados e regulares, lamentando por antecipação a dor que (sabiam bem) iriam causar. Do outro lado a resposta demorou. Primeiro uma luz, depois o barulho pesado de alguém a descer as escadas, algumas palavras murmuradas azedamente, e, finalmente, a chave a rodar na fechadura.
- Que faz a polícia aqui – perguntou – o que é que estão aqui a fazer a esta hora?
O seu coração acelerou. Sem dúvida que teria a ver com o bebé dos seus vizinhos.
Queres ver que o mataram - Pensou instantaneamente, lembrando as vezes que esteve prestes a confrontar os progenitores com um sermão sobre a forma correcta de educar um filho - De facto, o bebé chorava tanto que o teriam sacudido até à morte.
Calmamente, o mais calmamente que conseguiu, o agente começou por pedir ao senhor que tivesse calma, que tinha havido um acidente, dizia, mas que mantivesse a calma.
Do lado de dentro, o homem não compreendia. Não seria o bebé, mas o que poderia ser? A sua mulher estava ali, a sua filha estava a dormir, não tinha mais família ali perto e se fosse um familiar distante ou um amigo nunca iriam ter com ele. Seria engano, certamente.
- Mas que acidente?
25 anos de carreira na polícia preparam para muita coisa, mas dificilmente preparam alguém para dizer a um pai que a filha morreu.
- Foi a sua filha – soluçou, olhando o homem nos olhos.
Foi nesse momento que o senhor se acalmou, esboçando até um sorriso, enquanto olhava para a sua mulher no fundo das escadas, que se cobria com um espesso roupão.
- A minha filha está a dormir – disse, entre sorrisos.
- Lamento – continuou o agente, mas não há erro possível.
Já algo chateado, mas compreensivo, o homem explicou porque é que não podia ser a sua filha, convidando os dois agentes a entrar, ao mesmo tempo que procurava a sua mulher para que lhes preparasse alguma coisa.
Já não a viu, restando um vislumbre dos seus pés, que desapareciam entre as escadas e o tecto, num passo apressado.
- Sentem-se aqui que a minha mulher já vem – disse, explicando de seguida que ele mesmo acompanhara a sua filha até ao quarto quando se encaminhava para o quarto-de-banho, antes de se deitar.
Os agentes fizeram um breve silêncio, esperando algo mais do que o olhar que partilhavam.
Entretanto um grito desesperado ecoou na casa, perfurando o olhar do senhor que estava em pé à frente dos agentes, fazendo com que deixasse cair o copo de água que segurava numa das mãos.
Teria fugido a meio da noite, para se encontrar com o seu namorado, um rapaz que morava ali perto dentro da povoação. O acidente ocorrera junto a uma discoteca, deslocada da vila uns poucos quilómetros, na encosta de uma serra. O gelo na estrada e a mistura de álcool e drogas fora mais do que suficiente para desfazer um carro novo contra duas árvores.
Chapa retorcida, papéis e milhares de pedaços de plástico e ferro, ocupavam a estrada e lá ao fundo, postos lado a lado, cinco sacos de plástico cheios de vida, juventude e beleza.
(João Freire)