30/05/2009

Um lado cada vez menos amargo

Foi o que senti.

- E não devia

Tu sabias… tinhas a certeza que falavas com ela pela última vez!

- Eu estava ao teu lado

E mal conseguias conter as lágrimas.

A sua cara, o corpo… tudo diminuto. Parecia que encolhia à nossa frente, menos os olhos, que eram grandes e fortes, secos e duros, como ela!

- Como se fosse talhada de um carvalho.

Mas quando começou a dizer, em jeito de despedida, que fôssemos sempre amigos

- Eu e tu.

Tu saíste disparada, rebentando em lágrimas.

Ao dizer-lhe a ela que sim, que eu e tu seríamos sempre amigos, dividindo o olhar entre aquela senhora pequena e a tua sombra soluçada na parede do corredor…

- E não devia.

Senti que um acordo inviolável se escrevera.

E muito do que esse acordo previa ainda se mantém.

Sinto

- E não devia.

Que tenho de te proteger, compreender e aceitar, mesmo quando mais ninguém o faz, mesmo se mais ninguém o fizesse, e se, por um lado, isso me eleva perante ti

- E, mais uma vez, não devia

Por outro, confunde tudo o que possa sentir

- Bom ou mau!

Bom ou mau.

É injusto para ti, que não pediste nada, que não sentiste

- Nem sentes

Nada!

Aposto que, sabendo, me livrarias desse compromisso.

Mas um acordo é um acordo.

- As partes intervenientes disseram o que tinham a dizer naquele momento.

E, por ser prometido, nunca deixou de ser sincero.

- Claro.

E mesmo agora…

- Mesmo agora…

O sentimento amargo começa a desvanecer

- Desculpa

Desculpa.



Que se lixe.


(João Freire)

25/05/2009

Lisboa

O encanto de Lisboa é a sua grande falha. Lisboa é a luz do sol nas fachadas brancas das casas do bairro alto e de Alfama, Lisboa é o Castelo e a Graça, com os eléctricos a descerem as ruas serpenteantes, olhando de soslaio o Panteão e a Sé, ouvindo uma viola algures. Lisboa é o cheiro a aldeia de uma cidade que teima em agarrar-se ao seu passado provinciano sem se esquecer da modernidade das gentes que a populam no intervalo de uma bica no chiado... e Lisboa é o rio. Mas Lisboa tem medo, um medo fundado no passado, na suspeita de, à partida de cada barco, regressarem vários a reclamar aquilo de que fomos à procura há quinhentos anos a bordo de naus e caravelas ou o medo daquele terramoto (sem dúvida o terramoto), que abanou a memória da cidade até ao presente, impregnando-o de imagens de maremotos e valas cheias de corpos a arder num fim de tarde de muitos gritos e dor, afastando assim a cidade e as suas pessoas do rio, como amantes desavindos. Lisboa olha para o rio de longe e de cima, do alto e da segurança do miradouro da Senhora do Monte e do Adamastor, colocando entraves à proximidade como demonstração da sua resolução – terá sido grande o amuo! –, renunciando à harmonia de tempos idos. Lisboa, ao contrário do Porto, não abraça o rio: afasta-o secamente, virando a cara com vergonha, tristeza e apenas a reminiscência de algum amor, reclamando ao mesmo tempo a sua beleza e intangibilidade, à medida que o sol baixa, num perpétuo cor-de-laranja do entardecer, quando parece ouvir-se um choro a acompanhar um acorde final na viola.

(João Freire)



Lisboa que amanhece - Sérgio Godinho


Um Homem na Cidade - Carlos do Carmo

22/05/2009

06/05/2009

Cat Power

Lived in Bars


A voz doce e convidativa...
Achamos piada quando ela faz músculo (e faz muitas vezes)
e achamos piada quando franze a testa e pisca os olhos.
É querida, mas nota-se uma força rebelde prestes a brotar.
Depois move-se com elegância e estilo, é também assim que se veste.
E de que outra forma poderíamos gostar dela?
É Cat Power.
Ah! E para além dessas coisas (canções ou lá como lhe chamam) que ela faz muito bem, também é um pedaço de mulher. Será que estaria aqui se o não fosse?
(Duas músicas podem ser também a base de uma auto-reflexão entre o que é lamechas e bom e a importância da beleza nas coisas de que gosto)


The greatest

03/05/2009

Dia da mãe

"A casa não se apoia sobre a terra, apoia-se sobre uma mulher"

Ditado mexicano

01/05/2009

Falta de ar

Bateram à porta com intervalos demorados e regulares, lamentando por antecipação a dor que (sabiam bem) iriam causar. Do outro lado a resposta demorou. Primeiro uma luz, depois o barulho pesado de alguém a descer as escadas, algumas palavras murmuradas azedamente, e, finalmente, a chave a rodar na fechadura.

- Que faz a polícia aqui – perguntou – o que é que estão aqui a fazer a esta hora?

O seu coração acelerou. Sem dúvida que teria a ver com o bebé dos seus vizinhos.
Queres ver que o mataram - Pensou instantaneamente, lembrando as vezes que esteve prestes a confrontar os progenitores com um sermão sobre a forma correcta de educar um filho - De facto, o bebé chorava tanto que o teriam sacudido até à morte.

Calmamente, o mais calmamente que conseguiu, o agente começou por pedir ao senhor que tivesse calma, que tinha havido um acidente, dizia, mas que mantivesse a calma.

Do lado de dentro, o homem não compreendia. Não seria o bebé, mas o que poderia ser? A sua mulher estava ali, a sua filha estava a dormir, não tinha mais família ali perto e se fosse um familiar distante ou um amigo nunca iriam ter com ele. Seria engano, certamente.

- Mas que acidente?

25 anos de carreira na polícia preparam para muita coisa, mas dificilmente preparam alguém para dizer a um pai que a filha morreu.

- Foi a sua filha – soluçou, olhando o homem nos olhos.

Foi nesse momento que o senhor se acalmou, esboçando até um sorriso, enquanto olhava para a sua mulher no fundo das escadas, que se cobria com um espesso roupão.

- A minha filha está a dormir – disse, entre sorrisos.

- Lamento – continuou o agente, mas não há erro possível.

Já algo chateado, mas compreensivo, o homem explicou porque é que não podia ser a sua filha, convidando os dois agentes a entrar, ao mesmo tempo que procurava a sua mulher para que lhes preparasse alguma coisa.

Já não a viu, restando um vislumbre dos seus pés, que desapareciam entre as escadas e o tecto, num passo apressado.

- Sentem-se aqui que a minha mulher já vem – disse, explicando de seguida que ele mesmo acompanhara a sua filha até ao quarto quando se encaminhava para o quarto-de-banho, antes de se deitar.

Os agentes fizeram um breve silêncio, esperando algo mais do que o olhar que partilhavam.

Entretanto um grito desesperado ecoou na casa, perfurando o olhar do senhor que estava em pé à frente dos agentes, fazendo com que deixasse cair o copo de água que segurava numa das mãos.

Teria fugido a meio da noite, para se encontrar com o seu namorado, um rapaz que morava ali perto dentro da povoação. O acidente ocorrera junto a uma discoteca, deslocada da vila uns poucos quilómetros, na encosta de uma serra. O gelo na estrada e a mistura de álcool e drogas fora mais do que suficiente para desfazer um carro novo contra duas árvores.

Chapa retorcida, papéis e milhares de pedaços de plástico e ferro, ocupavam a estrada e lá ao fundo, postos lado a lado, cinco sacos de plástico cheios de vida, juventude e beleza.

(João Freire)

Retrovertigo - Mr. Bungle