Não percebi muito bem quando disseram que tinha caído. Acho que nem foi quando disseram que tinha gritado e caído. Terá sido mais ou menos quando a vi através da janela e me disseram que tinha gritado e caído devido a uma formiga na sua perna*. Claro que também achei alguma piada ao relato colorido que uma colega fizera dela, pois ninguém consegue passar além do gozo fácil na reacção ao caricato. Senti-me mal.
As suas atitudes denunciavam-na. As suas atitudes denunciavam-na, mas ninguém via.
Fiquei encarregue de a levar a casa, pois ela não achava/mostrava condições para continuar a trabalhar. As mãos na cabeça, como que a segurar o remoinho de confusão que era a sua mente, indicavam-me que havia algo mais. Durante a viagem disse que se enervou apenas, primeiro com uma alteração no método de trabalho, depois com uma confusão nas tarefas, e que “quando as coisas começam mal pela manhã já não melhoram durante o resto do dia”. Parecia que estava a sofrer com o nervosismo que a impedia de falar num tom de conversa normal. Não obstante a inteligência e afabilidade que demonstrava, falava anormalmente alto, incomodando-se e reagindo às suas próprias palavras, combatendo-se, respondendo, por exemplo, que ainda vivia com os pais, repetindo a informação bruscamente como se estivesse a condenar-se a si própria por isso, quando eu apenas lhe perguntara se ainda vivia com os pais para lhe perguntar depois pelo seu pai, que eu conhecia.
E eu começava a ver.
A mulher estava desesperada e ninguém poderia fazer alguma coisa naquela altura para a ajudar. Martelava as palavras da mesma forma que o seu cérebro a martelava a ela.
Há algo de assustador na insanidade, na perda de controlo. Depressões, esgotamentos, paranóia, tudo consequências de uma certa forma de vida que conhecemos. Não há culpados, apenas sofrimento.
Como será ter a consciência – porque deve haver uma fronteira ténue entre a sanidade e insanidade total – de que estamos a ficar malucos? Nada me entristece mais do que ver alguém sofrer, mais que não seja por me fazer pensar no grande ‘se’: e se fosse eu?
Lembro-me daquela rapariga como uma recordação do que me assusta, como a prova da fragilidade humana que também é minha e ouço as suas palavras envergonhadas e tristes ao sair do carro: “peço desculpa por aquela situação, mas há coisas que estão fora do nosso controlo e não podemos fazer nada por isso.” Depois, lembro-me de a ver sair, encolhendo os ombros num sorriso envergonhado, levantando ao mesmo tempo as sobrancelhas enquanto fechava a porta e virava costas a mais um dia de sofrimento.
* Na minha cabeça começaram a aparecer diferentes tipos de fobia e não parei enquanto não descobri o nome da fobia de formigas. Mirmecofobia é o seu nome.
(João Freire)
Ingenuidade
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Não são só as crianças que são ingénuas.
Há um dia que perdemos essa qualidade (ou defeito).
Ninguém nos ensina a viver mas, a vida ensina-nos que, as ...
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