(E logo ele que sempre se afligira a pensar nessas coisas enfermiças)
Não tinha sido um acontecimento isolado a provocar aquela transformação, nada de um momento para o outro, aliás, pudesse ele recordar-se - no meio de todas as memórias avulsas, imagens e sons que deambulavam erraticamente pela sua mente - e identificaria perfeitamente vários momentos decisivos na evolução da doença. Um dia em que se esqueceu das chaves de casa, outro dia em que reparou, já no elevador do seu prédio, que se esquecera de vestir uma camisa, até àquele dia em que deu por si num escuro beco da cidade com o lábio a sangrar. Pudesse ele lembrar-se de todos esses dias estranhos, nos quais havia uma réstia de coerência temporal e não sobreviria o medo e a confusão. Pior, só quando a sua imaginação gozava com ele, quando lhe assomavam imagens à cabeça de acontecimentos que lhe pareciam tão reais, mas que nunca lhe permitiam saber se o seriam de facto, se tais imagens se referiam a alguma experiência vivida ou, por outro lado, imaginada ou vista, ouvida ou lida, o que fosse, como quando afirmou que queria voltar para a sua mulher, apesar de nunca ter sido casado, ou quando jurou que tinha estado em Woodstock, apesar de ter apenas 39 anos. Nada era mais triste do que a cara dele ao dizer essas coisas, sabendo quem o ouvia que tudo era imaginado e sabendo ele que todos o olhavam como se ele fosse louco.
Tudo perdera o sentido e a ausência desse sentido era a única coisa que o seu cérebro, limitado pela doença, conseguia sentir de forma inteligente.
(João Freire)
23 comentários:
Está muito giro..
Há doenças lixadas...:S
A loucura assusta-me, mas em caso de doença não há nada a fazer*
beijinhoOoos
A loucura até tem as suas virtudes... mas a perda da consciência ou a perda das capacidades intelectuais (que são muitas) é que me assusta mais.
... E obrigado.
Só uma palavra em relação a :"...perda das capacidades intelectuais (que são muitas) é que me assusta mais."
CONVENCIDO!
:)
Muito bom texto. Como sempre. A loucura dá pano para mangas, acho eu...
É a loucura e a morte... e as bolas de Berlim... poços de ideias!
E obrigadinho.
Muito lindo o modo de falar ne LOUCURA. abraços,chica
Por acaso a loucura é um bicho que me atormenta e assusta. Uma bisavó minha morreu louca (diz a voz do povo), e tenho um primo mais ou menos da minha idade que sofre de esquizofrenia, e meu amigo tenho adizer-te que é aterrador a visão de todo esse processo que aliás está tão bem descrito pelas tuas palavras - uma pessoa perder-se de si...
Obrigadinho, Chica :)
Mel, nalguns casos a loucura até pode ser conveniente, porque também deve ser lixado ter a consciência da nossa própria degradação e incapacidade... prender-se-á tudo numa questão de nível e de tipo da loucura.... se for daquela raivosa, de gritos, machados e sangue... não convém nada, não.
Tá muita louco este texto :)
Os loucos, apesar de tudo, são pessoas que vêem mais do que os "sãos". Em certa medida, invejo-os... Sou louca, por confessar isso.
El Matsdor, muito obrigado.
Terá aspectos positivos, B, digamos assim... mas concordará que esta loucura é maioritariamente negativa.
ola!
Venha conhecer qual foi a minha verdadeira loucura.
http://sandrarandrade7.blogspot.com/2011/02/coletiva-loucura.html
vou te esperar na interação de amigos.
PODEMOS COMETER AS MAIS DIVERSAS LOUCURAS...
Carinhosamente,
sandra
A loucura, a perda da consciência e da independência assustam-me imenso.
As doenças mentais são terríveis.
Texto muito interessante.
Concordamos, Natália. Obrigado :)
Tema forte,cheio de preconceitos e tabus.Mas,se pode conviver muito bem com ela se adequadamente tratada.
Abraços,Bergilde
Esse é tipo de loucura que mais assusta: o de agir sem pensar nas consequências!
Belo texto, grande abraço!
Bergilde, só podemos esperar que sem sofra seja bem tratado. Obrigado pela visita.
JoeFather, a mim também.
Acho que todos nós receámos esse demónio que é a loucura quando esta se manifesta em proporções desmedidas... beijo
Receámos e receamos, Poetic GIRL, pelo menos eu, porque essa é a verdadeira loucura, a doença incapacitante que resulta dessa "loucura desmedida".
Muito bem retratada a angústia associada aos momentos de lucidez em que "o louco" sai de si e se observa enquanto espectador de si próprio. Tudo tranquilo, não fosse estar a olhar para a sua própria incoerência. Por cruel que soe, um estado de loucura permanente poderia porventura ser mais clemente, do que esta noção de constatação e impotência.
"quando a sua imaginação gozava com ele" - gostei muito desta animização. Faz todo o sentido.
Acho que foi melhor comentada do que retratada, esta minha "loucura" :)
E concordo plenamente, Anna.
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